Padrinho Wilson Carneiro de Souza, um dos fundadores do CEFLURIS em 1974, era o responsável pelo envio de Daime do Mestre Irineu para Porto Velho nos anos 60 e apesar da divisão entre grupos e a grande oposição ao grupo da Colônia Cinco Mil, em Rio Branco, continuou visitando festejos no CECLU até 1989.
As seitas surgem da realização de
ofícios sacratícios (instauradores do campo “espaço-tempo” sagrado) por parte
de um grupo de pessoas que compartilham uma mesma visão de mundo. Em certo
sentido, uma etnia indígena pode ser considerada uma seita, uma facção da cultura
de um grupo maior que se assume como tal e acentua um afastamento, ou por motivo da distância em si para o convívio e
comunicação, ou por algum particularismo próprio de um pajé ou xamã o qual elabore sua filosofia de modo próprio e assim venha a desenvolver toda uma
série de rituais com a função de dar estrutura às práticas religiosas do grupo. Quem
amarra a base de uma cultura são os pajés, artistas por excelência, que constroem
as raízes de uma etnia e assim conduzem o seu horizonte cultural. Entretanto, seitas
são visões estreitas, enquanto estruturas fechadas de pensamento, conformadas
em si mesmas, e esta não é a vocação, por exemplo, das culturas amazônicas
ancestrais, sempre tendentes à multiplicação e à multiplicidade dadas as
próprias características do ambiente da floresta, onde tudo está em permanente
reciclagem, inclusive a cultura.
Tal permeabilidade das culturas
amazônicas diverge das culturas andinas ancestrais, mais concentradas em sua
conservação, e talvez por isso a exposição à civilização seja mais aculturante
na Amazônia do que nos Andes, mas hoje em dia talvez já se encontrem no mesmo
nível de degradação em relação aos ambientes urbanos. Nas aldeias da Amazônia,
entretanto, o ambiente também protege o habitante tradicional, que possui
bagagem de sobrevivência na floresta há milhares de anos, e na riqueza dessa
etnobotânica os modernos pajés possuem meios de alcançar um dia uma autonomia
digna já que consiste em direitos coletivos inalienáveis a posse desse
conhecimento científico.
A Ayahuasca e o Iagé sempre foram
construtores de identidades étnicas na Amazônia. É assim que o Natem é
relembrado no Alto Rio Negro, como instrutor dos papéis sociais no grupo
comunal. Os Shuar o tiveram como instrutor de estratégias de grupo (caça,
pesca, e guerra), e os Arawak e Pano como instrutor dos processos terapêuticos.
Purgativo e rigoroso, o remédio da Ayahuasca se tornou comunhão no Acre brasileiro,
na comunidade religiosa liderada por Raimundo Irineu Serra, a partir de 1935, e
esta foi a primeira formação de uma “seita” cristã a partir da bebida
ancestral. Quando esse mesmo mestre destaca Daniel Pereira de Mattos para
formar seu próprio ritual na localidade da Vila Ivonete no final dos anos 40, estabelece
um “corpus” cultural particular para seu grupo e reconhece a liberdade de
estabelecimento de outro “corpus” cultural para o grupo liderado por seu amigo.
Nas exéquias do Frei Daniel em 1958, Mestre Irineu compareceu com seus
fardados, comungaram da Santa Luz daquele centro, e ao chegar de volta ao Alto
Santo decidiu o Mestre determinar que a partir daquela data os seus seguidores
não deveriam mais tomar Daime de outra administração. Compreender este dado,
informado por Daniel Serra, sobrinho do Mestre, nos permite entender o motivo
dos fardados do CICLU - Alto Santo até a presente data não comungarem Daime em
outras igrejas, mas também que cada grupo segue uma precepção e uma orientação
e cada pastor deve ser responsável por suas ovelhas, assim como cada paciente
deve seguir as prescrições e acompanhamento de seu terapeuta. Porque a
Ayahuasca da comunhão do Santo Daime é em essência um medicamento para as
almas.
Assim como Mestre Gabriel veio a
fundar a União do Vegetal em Rondônia de modo absolutamente particular, de acordo
com o seu processo de assimilação da cultura amazônica após longa iniciação com
o espiritismo caboclo do Nordeste, e disso adviram características próprias
para a U.D.V., outros mestres desenvolveram suas escolas e seus rituais
etnoterapêuticos, como o Mestre Inácio em Feijó, no Rio Envira, desde os anos
40, dentre outras casas de benzedores conhecedores dessa medicina indígena. O
grupo do Senhor Regino, em Porto Velho, que deu origem ao CECLU – Centro Eclético
de Correntes da Luz Universal fundado sob autorização do Mestre Irineu em 1970,
teve uma trajetória própria porque eram originariamente um grupo kardecista que
passou a receber Daime do Acre enviado pelo Mestre Irineu, passaram a estudar a
cartilha da Doutrina do Santo Daime para então receberem o fardamento e serem
instruídos para a produção própria do sacramento. Segundo Virgílio Nogueira do
Amaral, padrinho do CECLU, haviam algumas pessoas no grupo orginal que
conheciam os salmos do Frei Daniel e quiseram instrui-los localmente, mas Mestre
Irineu disse que cada casa tinha seus próprios adornos e os enfeites de sua
casa já existiam e eram as flores dos hinários que deviam ser aprendidos e aqueles
que os seguidores viessem a receber para instrução da comunidade.
Importante ressaltar que CICLU e
CECLU foram fundados de modo concomitante em estatutos paralelos onde o
conceito de “Ecletismo Evolutivo” foi inserido para definir uma visão, na
verdade política, do Mestre Raimundo Irineu Serra, de que sua Doutrina poderia sim
se expandir em outros lugares e regiões, mesmo que a partir de grupos já
oriundos de outra formação religiosa, desde que se preservassem e mantivessem
os rituais próprios da sua cartilha, sendo os desdobramentos resultantes das
instruções que estariam sendo recebidas por aquele grupo através destes trabalhos
e dos hinos dos membros da casa a serem praticados. As características da “seita”
permaneciam, deste modo, inalteradas, mas outras linhas de trabalho podiam ser
desenvolvidas localmente de acordo com a instrução da liderança espiritual
(desde que em outro momento que não o dos rituais do calendário da casa), bem
como outras orações podiam ser utilizadas durante as sessões de concentração ou
trabalhos de cura domiciliares. Esse modelo do Ecletismo Evolutivo é que deu
voz ao Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, o
CEFLURIS, e quando de seu surgimento em 1974, o primeiro estatuto era uma cópia
do estatuto do CECLU, pois se guardou o mesmo parâmetro. O CEFLURIS deteve,
então, o modelo de expansão da Doutrina, já que outras divisões do Alto Santo
se mantiveram no mesmo lugar e apenas o CEFLURIS renovou grandemente seu quadro
de membros e se moveu do Acre para o Amazonas, ao mesmo tempo em que autorizava
o estabelecimento de subsidiárias em outras capitais.
Quarenta anos após o falecimento
do Mestre Irineu, temos o Santo Daime como religião popular da Amazônia
transfigurada em diferentes prismas em muitas comunidades espalhadas Brasil
afora bem como no estrangeiro. Isto se deve à sua feição amazônica, mestiça,
multidiversa como a floresta que lhe dá substância. Os pajés de hoje se admiram
de observar essa conquista, e como herdeiros dessa tradição se mobilizam para
explicar ao mundo o valor de sua ciência etnobotânica, produzindo muita cultura
musical, muita energia terapêutica, numa mensagem de transfiguração que implica
em uma releitura dos haveres e deveres dos horizontes culturais de cada um, e
num balizamento de um ecumenismo caboclo que lê através dos símbolos e não
apenas na sua superfície dogmática alimentada por atavismos e não por
metamorfoses evolutivas. Os dois setores, o da preservação das tradições e o da
produção da criação dos mitologemas, tem de estar ativos, pois são os polos
positivo e negativo para a condução da energia. Tudo está em circuito, um ciclo
conduz a outro nessa espiral do tempo, e as Santas Medicinas estão aí para
curar a humanidade. Curando o sentido da vida humana, produzimos milagres. Cada
um que se encontre com a verdade que existe além das palavras encontrará também
o seu lugar no jogo cósmico do planeta, e nisto consiste uma Cultura
Viva: é ter na mente o Eterno!
* conheçam também o blog Cadernos de Hinário
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