sexta-feira, 30 de março de 2012

Xinã Bena 2012 no Jordão


ENTREVISTA COM O CACIQUE-GERAL DE JORDÃO, SIÃ KAXINAWÁ

- Siã, conte um pouco sobre como teve início o movimento do etnoturismo no Jordão, quem foram os primeiros a visitar a Terra Indígena?
-  Bom, no início estivemos ocupados com o processo de registro e demarcação da Terra Indígena, uma conquista que realizamos nos anos 80 com auxílio de pesquisadores e técnicos que foram os primeiros a estar nos visitando e conhecendo as nossas apresentações de cultura. Em 1988 fundamos a primeira associação indígena do Acre, a Associação dos Seringueiros Kaxinawá do Rio Jordão, e em 1992 a criação do município de Jordão passou a nos dar melhores condições de organizar nosso movimento, e assim também colaboradores da ASKARJ, muitos deles estrangeiros, passaram a conhecer as aldeias de Jordão em nossa companhia. A repercussão internacional da Cultura da Ayahuasca nos anos 90 também levou alguns de nossos pajés a serem convidados para apresentar nossas tradições em eventos em Rio de Janeiro, São Paulo, Florianópolis, Belo Horizonte, e também na França, Noruega, Canadá... Daí foi natural querer estender a estes amigos e parceiros a possibilidade de visitação turística nas aldeias e participação em nossos rituais no ambiente natural da floresta. Atualmente queremos que o Festival Cultural Hunikuin seja um evento anual no calendário turístico do estado, fazendo dessa oportunidade uma frente de contato com os nauás, com o pessoal que respeita e valoriza a cultura indígena e a vida na floresta, e que deseje compartilhar conosco só o que é bom da cultura de vocês, aquilo de bom que acontece quando a gente reúne gente de muito canto num lugar só, que é sempre uma compreensão maior das coisas. O Festival é uma oportunidade de negócio, mas também uma oportunidade de conversar sobre projetos comuns e maiores oportunidades, e isto não só para o povo de Jordão, mas também para o povo do Acre todo, e por isso o Governo nos apóia. 

- Então, e o que está previsto para este Segundo Festival?
- Com apoio da Secretaria de Turismo estamos construindo um novo alojamento e um refeitório para turistas na Aldeia Lago Lindo, e desenvolvendo um modelo de etnoturismo que tem sido pensado pelo Grupo Técnico Interinstitucional sobre o Etnoturismo, do qual participam a Assessoria Indígena do Estado do Acre e a FUNAI. Queremos fazer tudo o melhor possível, e estamos recebendo capacitação profissional de nossos txai para o gerenciamento do Festival. Além dos turistas, também recebemos como convidados especiais para este Festival uma comitiva do Povo Guarani de Santa Catarina, um grupo do México e outro da Colômbia, que são também pajés que vem realizar esse intercâmbio cultural conosco e abrilhantar a festa. Já temos pessoas da França, Áustria, Holanda e Suíça, que confirmaram presença, e com certeza o festival vai ter uma demanda muito grande de interessados. 

- Quantos ingressos vão estar disponíveis, e como podem ser adquiridos?
-  Até dia 5 de maio vamos estar vendendo ingressos, depois vamos estar nos preparativos finais e o acesso ao Festival estará restrito. Temos uma capacidade de receber mais de 150 turistas, isso porque temos lugar para alojar turistas em 150 redes, e muitas pessoas preferem acampar em barracas, portanto temos uma capacidade ainda limitada, para respeitar também o ambiente e as condições de recepção . Só a equipe indígena do festival são trezentas pessoas, é uma organização grande, por isso recomendo aos interessados em participar, principalmente aqui do Acre, que, como faltam menos de dois meses para o Festival, assegurem seus ingressos o quanto antes. No Facebook estamos com o grupo Festival Xinã Bena, para maiores informações, e um fórum com fotos do último festival. Aqui em Rio Branco nosso contato é o Bosco Nunes, telefone 99713232. 

- O que os turistas precisam levar para o Festival?
- Rede para dormida, barraca de camping, protetor solar, chapéu ou boné, repelente, equipamento de selva em geral, mas na Aldeia Lago Lindo não temos muito problema de carapanã. Lanternas com autonomia, estojo de primeiros-socorros, canecas e talheres pessoais, os turistas que vierem em grupos ou com a família devem prever esse tipo de necessidades. No último dia teremos um ritual de confraternização e uma troca simbólica de presentes. A programação completa do festival nós remetemos aos interessados através do e-mail banebari@gmail.com . Obrigado pela divulgação!
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Vejam AQUI notícia sobre recente nomeação do Cacique Siã Kaxinawá como Representante dos Povos Indígenas do Jordão junto ao Governo do Estado do Acre. Na Conferência Rio+20, no próximo mês de junho, Siã estará presente representando não apenas o Povo Hunikuin como também os Povos Isolados em situação de emergência na fronteira Brasil-Peru.
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fotos de Ion David e Anouk Garcia.  Confira matéria no Jornal Página 20 . Contatos: Travessia EcoTurismo

quarta-feira, 14 de março de 2012

Dos Direitos do Homem aos Direitos da Vida


Texto referencial extraído da obra “Somos as Águas Puras”, de Carlos Rodrigues Brandão (Campinas, SP: Papirus, 1994), no Capítulo 3 – Outros Olhares, Outros Afetos, Outras Ideias: Homem, Saber e Natureza (págs. 80-82). O autor, psicólogo, antropólogo e sociólogo, é um dos grandes nomes das cátedras universitárias brasileiras, e neste trecho de seu livro nos dá as coordenadas para uma melhor compreensão do processo histórico em andamento na Amazônia, bem como no restante do mundo globalizado: a Liberdade Humana não pressupõe a Liberdade à Vida, mas a Liberdade à Vida abrange a Liberdade Humana, e a responsabiliza.

Quando, no ano de 1976, Claude Lévi-Strauss é convidado para apresentar na Assembleia Nacional Francesa um depoimento a respeito da questão das liberdades humanas diante de uma comissão especial, ele o faz de uma maneira em que, por caminhos diferentes, mas não muito afastados, uma mesma ideia central lembra as propostas de alargamentos e inclusões lidas em Marcuse/Habermas. Lévi-Strauss tem à sua frente três documentos partidários sobre o assunto, e todos eles procuram estabelecer um fundamento universal para a ideia de liberdade e sobre os direitos dela derivados. Dois dos três documentos centram uma definição da liberdade sobre o ela ser “um caráter distintivo da natureza da vontade humana” e o texto do grupo comunista acentua, na liberdade, “os direitos imprescindíveis” atribuídos e possuídos “por todo o ser humano”. Uma tal extensão do sentido de liberdade a todos os homens, abolindo por consequência privilégios e direitos exclusivos de castas, classes, etnias e outras categorias de pessoas, é bastante recente, ele recorda. Mesmo hoje, na verdade, apenas frações muito pequenas da humanidade pensam segundo tais princípios e podem viver regidas por tais direitos.

Ao considerar impasses de uma lógica social de reciprocidades e de uma ética política de relacionamentos, o que Lévi-Strauss coloca em questão não são propriamente os seus princípios, mas a restrição de seu âmbito, o acanhamento de sua abrangência, o arbitrário de suas inclusões. E, para começo de conversa, o fundamento filosófico e jurídico da liberdade posto sobre a natureza do homem como e enquanto um ser moral. Duas críticas são levantadas. A primeira: essa universalidade moral é, ela própria, arbitrária e mais histórica do que “natural”, pois, “de acordo com os tempos, os lugares e os regimes”, a própria ideia elementar de liberdade admite conteúdos diversos e seus preceitos são aplicados segundo critérios e por meio de estratégias bastante desiguais. A segunda: na realidade social de sua aplicação, sempre é necessário restituir a liberdade ao seu caráter em verdade relativo, pois todos os documentos sobre o assunto submetem os direitos pessoais à liberdade a códigos jurídicos que os restringem aos limites da aplicação de leis específicas para torná-los socialmente realizáveis.

Seria possível encontrar um cenário e sujeitos para o fundamento da liberdade, onde a sua evidência fosse suficientemente forte para ser de fato indistintamente aplicada a todos? Provavelmente sim, mas não, por certo, dentro dos limites da ideia de homem como um ser moral, isto é, como um senhor de direitos devido à sua racionalidade, à sua existência social de criador de cultura, o que o exclui do âmbito de todos mais e de tudo à sua volta e, assim, exclui tudo e todos os “outros” da esfera dos direitos, logo, de uma possível reciprocidade neles fundada. Ora, se um tal princípio normativo não está aí, na “humanidade” exclusiva do homem, onde poderia estar? Simples. Na extensão da ideia do homem ao que é a sua característica mais essencialmente real e manifesta: ser um ser vivo. Ser, melhor ainda, um ser da vida. O que significa: partilhar com outros seres a própria vida.

 Eis um lugar natural mais irredutível e, ao mesmo tempo, mais generosamente abrangente e mais ontologicamente sólido, sobre o qual armar a morada dos direitos humanos, estendendo-os “naturalmente” de humanos a da vida. De uma maneira que me parece muito próxima à de Marcuse/Habermas, a ousadia do olhar de Lévi-Strauss desloca o centro (o homem como um ser moral, social) e o eixo (homem-homem, no cenário restrito da racionalidade e das reciprocidades propriamente sociais, em sua dimensão exclusivamente humana) para um domínio de identidades e relacionamentos muito alargado, e de que o homem participa, em vez de se excluir para dominar: a vida.

Pode ser que nem valha a pena, mas, nem que seja como uma breve homenagem da memória, gostaria de lembrar que o presságio que Claude Lévi-Strauss anuncia aqui (aportando a barca velha e avariada, em que viajam a ética e a jurisprudência com ambições de universalidade e de eternidade, na oficina de uma criteriosa revisão ontológica) lembra de raspão aquela notável e polêmica conclusão de Émile Durkheim nos momentos finais de As formas elementares da vida religiosa. Ao se perguntar e aos leitores porque as formas e matrizes fundamentais do pensamento sobre as categorias do mundo da natureza, pensadas como categorias do entendimento oriundo da experiência social, e criadas como um pensar da sociedade sobre si mesma, funcionam quando se aplicam à ordem lógica do mundo natural, ele acredita encontrar a resposta ao lembrar que a sociedade não é mais do que uma das dimensões, a mais completa e acabada, da ordem mesma do mundo natural. Claro, uma dimensão única que a todo sobrepassa, que acrescenta à vida e consciência, em que todo o significante encontra afinal o seu significado, onde o meramente coletivo se torna não apenas social, mas se realiza em uma forma sui generis de ordenação do real, a sociedade, onde finalmente a própria realidade pensa a si mesma através da comunicação entre os seus sujeitos. Mas, em tudo, uma dimensão organizada da natureza. Eis aí.

Ao estender o lugar da lógica e da ética dos fundamentos da liberdade de um humano-ser-moral para um humano-ser-da-vida, uma outra proposta de princípios dos direitos subordina-se à vida, de tal sorte que, então, os próprios direitos humanos submetem-se aos direitos da vida e à vida, contidos em todos os seres que dela participam, inclusive os humanos. Pois, agora, os limites das relações e suas consequências não estão mais entre os humanos e na sociedade,mas entre todos os tipos de seres vivos e nos entrecruzamentos entre a sociedade e a natureza. Uma decorrência direta: os direitos concretos da espécie humana devem ser pensados na sua relação com os direitos de existência e realização de outras espécies de seres vivos – animais e plantas, sobretudo. De tal sorte que eles deveriam “cessar”, se colocam em risco a sobrevivência de uma das outras espécies que, com a humana, partilham do mistério da realidade e, por consequência, dos direitos à vida. Com o que, a uma lógica de relacionamento e comunicações que estenda o sentido de ser-em-relação da vida humana à vida em-si deve corresponder uma ética e uma jurisprudência onde os direitos de toda a vida, e não apenas os da vida humana, devem ser por igual considerados. E esta seria, afinal, a sua universalidade.

+++ (o mais, conheçam o livro...)

Pois bem, para esta nossa proposta de EcoGnose, esmiuçando a realidade planetária, temos que a maioria das culturas humanas antropocentricamente se propôs direitos de sobrevivência às custas do extermínio de outras formas de vida, como talvez tenha ocorrido com os nossos próprios parentes primatas os chamados Neanderthais, sem contar nas defesas de territórios de morada das famílias humanas, mas a pecuária, profissão curiosamente inaugurada pela vítima (Abel, o pastor) e não pelo algoz (Caim, o lavrador), distoou da mais antiga profissão de caçador-coletor, que pressupunha um alinhamento energético entre as criaturas que necessitava ser harmonizado através de rituais, sons e gestos, e formou a primeira linha de produção de carne, cujo ofício em repetição durante as gerações de animais alimentados para depois servir como alimento aos humanos foi a primeira sugestão da mecanização que formou o pensamento capitalista de acumulação de capital. O que as produções agrícolas, submetidas a outros fatores ambientais (culturas de subsistência ou de suporte econômico de uma atividade colonizadora, por vezes da própria nação), jamais sugeririam, já que dependentes de uma estrutura social mais coletivista, e, portanto, humana. Neste sentido é que o discurso de Lévi-Strauss sobre a liberdade, aqui apresentado por Brandão, aponta para o transcurso da obra de Leonardo Boff e a Teologia da Libertação aplicada à Liberdade da Vida, e atualiza o Cristianismo em um contexto de Cristo libertador de todo sacrifício, como o gesto de Yeshua Ben-Yussef no Templo de Jerusalém que o conduziu à condenação dos sacerdotes: aboliu a escravidão dos animais... Abriu assim ELE a porta da liberdade a toda a forma de vida!    

(Eduardo Bayer Karipunã - Acre, Amazônia, Brasil).

Fonte da imagem e excelente site: Signs of Heaven. Leiam a Entrevista de Claude Lévi-Strauss aos 90 Anos a Beatriz Perrone Moisés em Revista de Antropologia, e vejam algo mais em Revista Mirabilia 6

segunda-feira, 12 de março de 2012

The Vine and the Wine: A Vinha e o Vinho

Hartmann Schedel. Liber Cronicarum. Nuremberg:
Anton Koberger, 12 Julho 1493
Representação xilográfica de Noé bêbado e seus três filhos.

Toda civilização tem sua substância de recreação. As civilizações mediterrâneas surgiram como culturas de bebidas fermentadas, dentre as quais se destaca certamente o vinho da uva. Todas as civilizações conhecem a produção de álcool. No Egito e na Babilônia foram encontrados relatos de sua utilização, datados de 6000 anos atrás. Foram os árabes que além da fermentação, incluíram a destilação, aumentando assim a eficácia ou malefício das bebidas, na Idade Média, onde AL-GOL (Álcool) seria o nome de um demônio. No entanto, existe uma grande diversidade de atitudes diante das bebidas alcoólicas. Se para algumas as bebidas alcoólicas fazem parte do dia a dia (para o bem e para o mal) e das principais comemorações (além de constituírem importante fonte de renda e de impostos), em outras, notadamente a islâmica, as bebidas alcoólicas são estritamente proibidas.

As bebidas destiladas têm teor alcoólico mais alto. Todas as bebidas passam pela fermentação, produzida principalmente por leveduras. Mas algumas, depois disso, passam ainda por um processo de destilação, ou seja, os álcoois e ácidos orgânicos - responsáveis pelo odor e pelo sabor - presentes na bebida são transformados em vapor e depois, novamente em líquido. Assim, vão para outro recipiente, mas sem a água existente na bebida: como ela tem um ponto de ebulição mais alto, não evapora totalmente e o líquido resultante fica muito mais concentrado. É o caso, por exemplo, do uísque, da caninha e da vodca. O conhaque é o próprio vinho de uvas destilado após a fermentação natural. As bebidas fermentadas, como a cerveja e o vinho, têm, no máximo, 18% de álcool, enquanto as destiladas podem atingir até 70%.    

Os povos ameríndios produziam uma grande variedade de bebidas alcoólicas fermentadas (mais de 80 tipos) a partir de frutos, tubérculos, raízes, folhas e sementes. Na Amazônia Ocidental, a mais conhecida é o Masato, ou Chicha de Yuca. Neste sentido é muito importante conhecer o estudo de João Azevedo Fernandes, "Selvagens Bebedeiras: Álcool, Embriaguez e Contatos Culturais no Brasil Colonial" (disponível em pdf aqui). Nos anos 90, no Estado do Acre, uma Aldeia Ashaninka foi invadida pela Polícia Federal em busca de pés de ipadu, que era tradicionalmente utilizada como ingrediente do Masato kampa e obviamente nada tinha que ver com as políticas da War on Drugs , nem era usada para efeito entorpecente senão digestivo. Muito mais grave é a situação dos indígenas na região de fronteira onde bolivianos e peruanos também comercializam Metanol misturado a bebidas baratas. Tudo isto agrava a situação de aculturação e vulnerabilidade dessas populações tradicionais.

Em contraposição, os povos Pano e Aruák do Brasil já têm a Ayahuasca, que não é um "vinho" (um "fermentado", e sim um cozimento de essências vegetais com poderes psicoativos (uma das quais uma "vinha", ou a liana Banisteriopsis caapi). Não é uma substância de recreação, mas de autoconhecimento. Não é encarada como lazer, e sim como dever, como trabalho espiritual. Não representa uma embriaguez com privação dos sentidos, e sim uma embriaguez com amplificação dos sentidos. Não é uma mercadoria, e sim um produto cultural. Esta bebida foi incorporada pelos novos moradores da Amazônia do século 20, os seringueiros, como sacramento religioso. Passou a ser utilizada como hóstia vegetal, como ferramenta de cura, como ferramenta sócio-terapêutica. Alavancou comunidades e formou na região culturas rituais peculiares, com identidade própria e em interação com as culturas de seu tempo de modo singular. Após longo tempo de ocultamento, a partir do I Congresso Internacional da Ayahuasca, na Universidade Federal do Acre, em Rio Branco, a Cultura da Ayahuasca entrou em fase de autoafirmação na defesa comum dos interesses das comunidades aiauasqueiras, o que o estabelecimento de uma política cultural específica por parte do Governo do Estado, a partir de 1999, endossaria, conduzindo ao atual processo de registro desta cultura como patrimônio cultural imaterial da nação brasileira, e quem sabe, em um futuro não distante, reconhecida como patrimônio de toda a humanidade.

Talvez no futuro tenhamos uma Organização Internacional da Ayahuasca Amazônica na qualidade da Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), organização internacional criada em Abril de 2001, em substituição do Office International du Vin, uma instituição criada em 1924 e transformada em Office international de la Vigne et du Vin em 1958. A OIV é composta por 45 Estados membros e por uma região com o estatuto de observação (Yantai, na China), e existem ainda observadores permanentes de diversas organizações setoriais ligadas ao vinho e à vinha. A OIV define-se como um organismo intergovernamental de carácter científico e técnico de competência reconhecida no domínio das vinhas e do vinho, das bebidas à base de vinho, das uvas de mesa, das  passas secas e de outros produtos derivados da vinha. Este organismo tem como missão principal o aconselhamento e a padronização em apoio aos diferentes actores da fileira económica da viticultura, em especial na área dos actos normativos dos Estados membros. A organização orienta os seus trabalhos científicos próprios e pode participar em processos de regulamentação nos domínios vitivinícola e de sanidade e saúde pública.

Fontes: Vinum Essentia est VitaeTunnels of Gates .  Saibam mais em Villa Parasol , em Vinhos, Rios, Deuses e Civilizações - O Egito, de Alexandre Camanho de Assis, e também em Vinha, Homem e Vinho , por Irineo Dall´Agnol.

sexta-feira, 2 de março de 2012

O Poder da Palavra


O dom de Adão era o mesmo que o de Orfeu: dar nome ao que não tinha. Por isso, para entender palavras de prata e silêncios de ouro, recomendo a leitura de: “O Poder da Palavra – Adão e os Animais na Tapeçaria de Gerona”, em: Franco Júnior, Hilário. A EVA BARBADA: ENSAIOS DE MITOLOGIA MEDIEVAL. 1996, Editora da USP. Acho importante apresentar este excerto das páginas 112-114, para desenvolver um raciocínio aplicado: 

"" No judaísmo, segundo a expressão bíblica, “a morte e a vida estão em poder da língua”, como demonstra o fato de o universo ter sido criado pela palavra de Deus. Contudo a expressão mais clara daquele princípio estava no próprio nome de Deus, tão forte que era impronunciável. Todos os nomes divinos eram poderosos: “Quem evocar o nome do Senhor será salvo”. O cristianismo, inserido na mesma estrutura mental, também acreditava no poder da palavra, sobretudo na palavra de Deus, que é como uma “espada”, e dos nomes divinos, que “nenhuma boca de homem deve pronunciar se não estiver em perigo de vida”. O islamismo aceitava igualmente esse poder mágico, sobretudo a corrente sufista, para cujos adeptos o caráter sagrado das palavras de Alá era tal que elas deveriam ser repetidas independentemente de o homem compreendê-las. Para os celtas, um dos principais heróis da corte de Artur era Gwrhyr Gwaslstawt Ieithoedd, literalmente “intérprete de línguas”, aquele que todos os idiomas existentes.

Herdeira de todas essas tradições, a sociedade cristã ocidental também reservava lugar importante à palavra na sua visão do mundo. Ela era considerada criadora, mas também destrutiva, como para egípcios, judeus e celtas. Mal utilizada, ela poderia levar ao aparecimento do Diabo sob forma animal, como faziam os hereges de Orleans em princípios do século 11. Mas poderia também dominar os demônios, como fez São Marcial de Limoges, segundo uma hagiografia da mesma época: conhecedor de todas as línguas, o santo conjura os anjos maus e força-os a dizerem seus nomes, forma de dominá-los e de poder então ordenar que desapareçam para sempre no deserto. Assim como possuir um nome é existir, conhecer o nome é controlar aquilo que ele designa. Por isso mesmo, certos objetos recebiam nomes, caso das espadas de alguns heróis como Cid, Rolando, Olivier, Turpin, Ganelão, Carlos Magno e Artur. Enfim, saber usar as palavras equivale a uma prática de poder, por essa razão Deus tinha feito de Moisés um orador.

O poder da palavra era visto como algo efetivo, daí por que a sociedade medieval tinha um vasto campo semântico de violência verbal. O modelo era bíblico, pois a própria Divindade havia amaldiçoado a serpente responsável pelo pecado de Adão e Eva. A maldição de Noé sobre Cam era considerada a origem do fenômeno social da escravidão. De acordo com essa visão – apesar de São Pedro falar em “bendizer aqueles que te maldizem” e de São Bento haver recomendado aos monges “benzer, não maldizer” – a documentação monástica medieval mostra diversos exemplos de fórmulas de maldição. Reconhecendo a eficácia simbólica da palavra e desejando restringir seu uso, em meados do século 11 Pedro Damiano relembrava as advertências bíblicas contra o “vício da língua”; de fins do século 12 a meados do 13 os teólogos sistematicamente discutiram, avaliaram e classificaram diversos “pecados da língua”; na segunda metade do século 13, o poder monárquico recém-fortalecido legislava contra a blasfêmia, como fizeram Luís XI na França e Afonso X em Castela.

Bem empregada, como na confissão, a palavra salva. Com exceção de Graciano, todos os teólogos do século 12 consideravam a confissão obrigatória, o que o Concílio de Latrão de 1215 regulamentou ao impô-la ao menos anualmente a todo cristão. Apesar de a cultura eclesiástica insistir em que a confissão deve ser dirigida a um sacerdote, na ausência deste ela podia ser feita mesmo a um leigo. A necessidade mítica da expiação pela palavra era mais forte do que as restrições ideológicas. A palavra salva mesmo a posteriori, como nas preces e missas rezadas pelas almas dos mortos. Porque a palavra é poderosa, quando não pronunciada ela se torna perigosa. O silêncio de Percival, que não fez a pergunta adequada, prolongou os sofrimentos do Rei Pescador e de sua terra. Misteriosa e ambígua, a palavra estava na base de tudo. Como dissera o próprio Cristo, “por tuas palavras serás justificado e por tuas palavras serás condenado”.

Segundo Pedro Lombardo, o rito central da transubstanciação ocorre no momento em que a fórmula litúrgica é pronunciada, ou seja, a transformação do pão e vinho em carne e sangue de Cristo se dá “pela força das palavras”, na expressão de Pedro Comestor. Entende-se assim por que as ideias de Berengário de Tours foram condenadas por vários concílios na segunda metade do século 11. Ao negar a realidade da transubstanciação e ao defender a livre interpretação das Escrituras, ele não apenas ameaçava no essencial a atividade sacerdotal como também contrariava a crença geral no poder mágico das palavras. Sentido semelhante teve no começo do século seguinte a heresia de Tanchelm de Antuérpia, para quem a eficácia do sacramento depende da condição moral de quem o ministra. Nesse quadro mental, os debates teológicos sobre o nominalismo e o realismo eram a expressão erudita de preocupações e interesses profundos, que tocavam em questões fundamentais para o homem da Idade Média.

Para a sociedade cristã medieval, o sacramento do batismo era o verdadeiro nascimento do indivíduo, não apenas porque ele era lavado do Pecado Original e ingressava então efetivamente naquela sociedade, mas também porque recebia um nome. De fato, para a mentalidade arcaica, somente o que tem nome existe. E, se esse nome é o de um mártir, santo ou personagem bíblica, a pessoa poderia assumir algumas de suas virtudes, segundo o velho princípio do bonum nomen, homum bonum. O homem enquanto espécie é semelhante ao Criador, enquanto indivíduo é semelhante ao patrono. Por isso, ao se tornar papa, a pessoa mudava de nome. Por isso também um cristão não utilizava nomes próprios pagãos. Por isso, enfim, não se adotava o nome de Cristo. O nome é sempre imagem de um modelo. ""