Gnosis vem de gignósko, conhecer. Para os ecognósticos a Ecognose é um conhecimento da natureza que brota do coração,
o sentido da vida humana ao perceber-se em interação com a natureza universal, permitindo o encontro do homem com sua Essência fundamental.
O pajé-mirim André Ixã Domingos, conhecendo o Caupuri cultivado no Distrito Federal, em visita ao Centro de Cultura Cósmica do Gama em 2008.
A etnofarmacologia
caracteriza os índios kaxinawás (Hunikuin) do Estado do Acre como tradicionais bebedores
do hayawaskha, cultura ancestral da região da Amazônia Ocidental. A
malpighiácea Banisteriopsis caapi é conhecida pelo nome de huní
(o “ser”), e classificada de acordo com suas propriedades no efeito do
hayawaskha, de modo que podemos configurar as seguintes variedades:
Banisteriopsis caapi var. icthys
Banisteriopsis caapi var. jagube
Banisteriopsis caapi var. mariri
Banisteriopsis caapi var. wakamayo
A variedade icthys é
conhecida como baka huní (cipó-peixe) por ter uma luz branca como efeito
da bebida.
A variedade jagube é
conhecida como shawã huní pela luminosidade dourada, amarela. É mais
comum na região do Estado do Acre, onde é conhecida como “caboclinho”,
“ourinho”, “jagube”.
A variedade mariri é
conhecida como shane huní pela luminosidade azulada. É mais comum no
Estado de Rondônia, onde é empregado pelos vegetalistas com o nome de “mariri”,
que em outras nações indígenas quer dizer “festa da natureza”.
A variedade wakamayo é
conhecida como nê huní pela luminosidade avermelhada. É mais comum no
Estado do Amazonas, onde é denominada cipó-arara, por ser mais amargo e vermelho
que os demais hayawaskhas. É cipó de terras firmes, distantes dos igapós, no
mais profundo das selvas. O nome “wakamayo” é o substantivo quechua para
“arara”. Estas variedades etnobotânicas podem estar relacionadas a características de solo: neste sentido, a var. icthys é a que aparece nos solos alagados, a var. jagube nos solos que alagam na época das grandes cheias dos rios, a var. mariri em solos mais bem drenados e a var. wakamayo em solos mais firmes.
Em 1905 o eminente
cientista brasileiro João Barbosa Rodrigues publicou pela Imprensa Nacional seu
“Mbaé Kaá – Tapyiyetá Enoyndaua” ou “A Botânica – Nomenclatura Indígena”, onde
identifica a sabedoria do conhecimento botânico dos nativos do Brasil e mostra
claramente que Caapi (Kaapiy) é gênero relativo às gramíneas (de Kaa,
erva, pi, pele, y fina, “pele fina de ervas”), pelo que fica
claro que Spruce ao querer informar-se do nome indígena do cipó da Banisteria
foi desinformado, sendo claro a importância sagrada do nome entre populações
indígenas: disseram-lhe que era “caapi” como quem diz “é mato”. A nomenclatura
deveria então ser necessariamente corrigida, pois o termo indígena para lianas (daonde a
palavra “cipó”) é ycypo. Curioso mencionar que Barbosa Rodrigues não soube
identificar a espécie correspondente a “cypó kytyka” (“cipó que limpa”), o que
nos remete ao aspecto purgativo do hayawaskha que estudamos. Haya = “amargo”, waskha = “corda, envira”: o nome hayawaskha em quêtxua (pronuncia-se assim o que lemos em espanhol quéchua) quer dizer mesmo Cipó Amargoso,
sendo portanto mais um adjetivo do que um substantivo (o nome próprio de
espíritos de muita força é sempre secreto, para ser pronunciado apenas nas
ocasiões certas).
No Iagé, a Banisteriopsis rusbyana (chacroponga), é a fonte de DMT do preparo , enquanto na Hayawaskha, a Psychotria viridis (chacruna) é quem complementa a transubstanciação na beberagem.
Na última década os centros religiosos produtores
de hayawaskha no Brasil se interessaram pelo cultivo do Caupuri, variedade de Banisteriopsis conhecida pelos Hunikuin
como tõko huní (cipó grosso), por
produzir massa vegetal mais rápido em climas mais adversos como os de outras
regiões subtropicais. Ignora-se, entretanto, se o receituário de preparo
tradicional do hayawaskha com tõko huní
incluiria outras plantas para seu consumo sem contra-indicações específicas,
pois os Mestres fundadores desses centros não o utilizavam, e essa inovação de
ter o Caupuri como substitutivo é bastante controversa. Apesar da parte
floral da variedade caupuri ser similar à das demais variedades (em Rondônia existe
Caupuri de flor amarela, cultivado em Ji-Paraná, mas inexistem análises
genéticas para se descobrir se este Caupuri da flor amarela é o original tõko huní e os de flor branco-rósea são
já híbridos entre variedades). O fato é que os feixes vasculares das variedades
mais tradicionais são bem diferentes dos da variedade Caupuri, e isso exige um processo de maceração também
diferenciado para seu aproveitamento.
Segundo Wade Davis, discípulo do grande botânico
norte-americano Schultes, que seguiu as pegadas de Spruce na investigação do
Caapi, todas as plantas existentes na Amazônia sul-ocidental (Peru, Acre e
Bolívia) são espécimes cultivadas, ou seja, são resultado de intercâmbios
anteriores. Há uma região delimitada na Amazônia equatorial onde existem
catorze variedades nativas de Banisteriopsis, e este foi o berço da Cultura do
Iagé há cinco mil anos. O Iagé é resultado da cocção do caule macerado de Banisteriopsis
caapi com as folhas do Banisteriopsis rusbyana (chacroponga), numa união adelfogâmica entre plantas da mesma
família. A substituição da chacroponga
pela chacruna (Psychotria viridis),
uma rubiácea (da família portanto do café e do mulateiro), se deu a partir da
margem direita do Grande Amazonas, e estabeleceu a Cultura da Hayawaskha
(Aiauasca ou Ayahuasca) paralelamente à Cultura do Iagé hoje presente na
Colômbia e Equador, e no noroeste do Amazonas brasileiro.
Conectados no processo histórico de valorização e
resgate das culturas tradicionais do planeta e sua ampla diversidade, os
indígenas brasileiros estão hoje dando os primeiros passos no caminho do
reconhecimento internacional de sua ciência etnobotânica e seu potencial
terapêutico para as mazelas tanto físicas quanto psicológicas da humanidade.
Estão apresentando sua Ciência, e esperam ver respeitados tantos os seus
direitos mais amplos, de utilização da própria cultura para benefício da
coletividade, quanto aqueles mais específicos, quanto aos seus direitos
intelectuais coletivos em relação à tamanha riqueza de conhecimentos.
Flores de Jagube: se transformam em sementes aladas para sua dispersão na natureza.
“No fundo do beco sem
saída que forma o Brasil na fronteira com o Peru, na direção das nascentes do
Juruá e de seus grandes afluentes, o Envira e o Tarauacá, um pouco por toda
parte, nas margens dos pequenos cursos d´água, no meio da grande floresta
equatorial, estendiam-se ainda há vinte anos (1905) numerosas aldeias indígenas
que falavam em sua totalidade um dialeto pano, aparentado e quase idêntico ao
do clã dos Índios Panos (tatu gigante) do rio Ucayali. Cada clã levava o nome
de um animal, combinado à palavra “nawa”, que significa “povo”. Tínhamos assim
a “povo sapo” ou Poya-nawa; a “povo sagui” ou Chipi-nawa; a “povo esquilo” ou
Kapa-nawa; os “homens-javali” ou Yawa-nawa; os “homens-arara” ou Chauen-Nawa;
os “marimbondos”, s “abelhas”, os “jacamins ou pássaros-trombeta” que se
intitulavam Bina-nawa, Chara-nawa, Neha-nawa, etc. Contrastando com todos os
outros, mais numerosos e mais trabalhadores também, havia os “homens-vampiro”
ou Kachinaua. Eram esses Índios originários de seus irmãos de língua e de totem
do Ucayali, os Kashibo, tão célebres na história das Missões do Peru oriental?
A coisa é mais do que provável. Kashibo não é mais do que a forma plural de Kashi;
o Ucayali é vizinho do Juruá; e é muito natural que os Kashibo, expulsos do
Ucayali pelos peles-vermelhas evangelizados, tenham vindo buscar refúgio no
Juruá, ainda inexplorado pelos brancos. Nossos Kashinawa seriam portanto
descendentes dos massacradores de missionários e de viajantes que percorreram o
Ucayali no século XVIII.”
Estas considerações do padre católico Constantin Tastevin*,
em 1925, sobre os Kaxinawá que conheceu no Alto Rio Jordão, relaciona
diretamente esta etnia no Vale do Juruá com os Kashibo do Vale do Ucayali.
Estudos em lingüística podem demonstrar se há conexão direta entre um idioma
Pano e outro, mas não o quanto tempo de dispersão essas diferenças indicam, se
é que indicam, já que no caso dos clãs do tronco linguístico Pano, havia uma
convivência compartilhada dentro de uma mesma região, em forma de confederação.
Após o processo de guerra contra os índios para instalação dos seringais,
muitos clãs reagruparam-se por meio de seus poucos sobreviventes, e
reinventaram uma identidade singular como resultante desse processo histórico,
como os Katukina e Jaminawa. Mas vejamos um outro relato pouco posterior de
Tastevin para entender como funcionava a confederação Pano do Alto Rio Muru, e
como o nome Hunikuin, hoje exclusivo dos outrora chamados Kaxinawá, seria nesse
tempo um nome de união para todo Povo Pano:
“Os Huni-kuin – Antes
da invasão dos seringueiros vindos do nordeste do Brasil, o Muru era habitado
apenas por índios selvagens. Eles estavam mais concentrados aí do que em
qualquer outro lugar. A maioria falava o dialeto Pano e se autodenominava
Huni-kuin, “os verdadeiros homens”. Eles se dividiam em vários clãs, ora
aliados, ora inimigos, o mais importante deles era o dos Kachinaua (os homens
vampiros), que povoavam sobretudo os afluentes da margem direita do Médio Muru.
Eles aceitaram inicialmente sem hostilidade a vizinhança dos seringueiros, mas
pouco a pouco a cobiça, o ciúme, a grande diferença de mentalidade, de língua,
de civilização, de religião e de costumes das duas raças fizeram com que
conflitos, inicialmente parciais, estourassem em guerra sem perdão. Os
caucheiros primeiramente, ou seja, os peruanos que exploravam pioneiramente a Castilloa
elastica, que é preciso abater para
utilizar; em seguida os seringueiros, ou seja, os brasileiros, a população
estável, organizaram “correrias”, verdadeiras expedições armadas para desalojar
os índios do seu lugar a fogo e sangue e permitir aos civilizados trabalhar em
paz. (...)
Outros Huni-kuin moravam
no Alto Muru e seus afluentes. Os mais importantes eram os Yamináua (os
fabricantes de machados, Yami). Nas suas narrativas os Kachinaua atribuem
sempre aos Yamináua as invenções da civilização indígena. Os Jaminauas, como
dizem os brasileiros, seriam mais inteligentes, mais valentes, mais
independentes, mais bem encorpados e também mais brancos que os Kachinaua.
Foram eles que descobriram as propriedades purgativas, vomitórias e mágicas do
líquido secretado pelo sapo kampô; ensinaram e difundiram o uso do suco de cipó
ksya, ou simplesmente cipó (honi ou honê), que produz neles o efeito do ópio;
ensinaram o uso do rapé e da planta que escurece os dentes; fabricavam machados
de pedra, e é a eles também que devemos a introdução da noite (yams) no mundo.
Os Kachinaua lhes davam o sobrenome de Sáinaua, os gritalhões. Estiveram sobre
o Iboyassú, sobre o Jaminaua ou Motuya (rio das taiobas), afluente da margem
direita do Alto Muru, ou Guaraciaba, e na foz do Muruzinho de cima, sobre a
margem esquerda do Muru. Hoje eles estão para lá do Envira.
Assinalemos ainda os
Hsu-naua (rãs) misturados aos Kachinaua; os Paranaua (enganadores, ou
preparadores de emboscada) do rio Teixeira ou Marchachya (rio das pedras); os
Bastanaua, que um seringueiro chamava Bátaraua, cujo nome significa “filhos da
floresta”. Estes últimos se alimentavam, como Adão no paraíso terrestre, do que
lhes oferecia a natureza e daquilo que podiam roubar aos seus vizinhos
trabalhadores. Vivendo sempre à sombra das grandes florestas, e não vendo nunca
o sol, por assim dizer, senão através das árvores, eles ficaram mais brancos do
que os outros índios, e alguns deles tinham uma barba muito longa, o que é um
fenômeno entre os peles-vermelhas. Os seus cabelos, ao sol, lançavam reflexos
arruivados, o que foi a origem dos rumores de que havia, nas nascentes do MUru,
uma raça de índios brancos, de barba comprida, cabelos loiros e estatura de
gigante: trata-se tão somente de um engano, muito comum sob o sol quente dos
trópicos. (...)Entre o Envira e o Muru
existiam ainda, segundo a índia Parãnaua Tsátsa Wanó, os Kununaua, comedores de
cogumelos (kunu, cogumelo), os Tuchi ou Tochinaua (tuchi, amarelo; tóchi,
periquito verde com penas brancas nas asas); e os Kontanaua (konta, palmeira
jaci, dá coco e tem as folhas grandes). Hoje todos estes índios se retiraram em
direção às nascentes e à margem direita do Envira. Alguns Kachinaua habitam à
margem esquerda do Tarauacá.”
Sobre os Kaxinawá do Brasil serem ou não descendentes de
parte dos Cashibos do Peru dispersos ainda no século 18, e sobre o Povo Pano do
Brasil ter sido uma confederação étnica Hunikuin, da qual os Kaxinawá herdaram
o nome de Etnia Hunikuin na atualidade, será interessante mencionar aqui um
artigo de Cristhian Teófilo da Silva, publicado pela Revista de Estudos e
Pesquisas da FUNAI**:
“A ideia da
IDENTIDADE CONTRASTIVA, presente na literatura antropológica, aliada ao
reconhecimento da agencialidade política dos índios, mesmo os INTEGRADOS,
influiu decisivamente na adoção recente pelo órgão indigenista brasileiro da
Convenção no.169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Entretanto,
apesar de a IDENTIDADE CONTRASTIVA ser um conceito operacional, não se deve
tomá-lo em si mesmo, cristalizando a própria identidade étnica como um objeto
de análise estanque a partir do qual a identificação de um grupo étnico como
povo indígena poderia ser alcançada objetivamente. Afinal, o conceito de
identidade contrastiva promove uma polaridade analítica para a realidade das
sociedades indígenas do Brasil. De um lado estariam positivamente estabelecidos
os ÍNDIOS e de outro, negativamente, os BRANCOS. Entretanto, para o caso de
ÍNDIOS MISTURADOS, colocar esses de um lado e BRANCOS de outro promove uma
falsa interpretação da realidade, porque desconsidera outras categorias
sociais, que a própria mistura de ÍNDIOS MISTURADOS prova existir. Sendo assim,
ÍNDIOS e BRANCOS ou NÃO-ÍNDIOS, devem ser pensados enquanto construções sociais
oriunda de contextos ideológicos específicos em que estas categorias referem-se
mais a representações políticas de grupos de interesse locais e agências de
contato do que a descrições literais de atores sociais concretos e
heterogêneos. Nesse sentido, (...) concordo com Carneiro da Cunha (1987)***:
A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em
situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas
adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto se
torna cultura de contraste: este novo princípio que a subentende, a do
contraste, determina vários processos. A cultura tende ao mesmo tempo a se
acentuar, tornando-se mais visível, e a se simplificar e enrijecer,
reduzindo-se a um número menor de traços que se tornam diacríticos. (...) Em
suma, e com o perdão do trocadilho, existe uma bagagem cultural, mas ela deve
ser sucinta: não se levam para a diáspora todos os seus pertences. Manda-se
buscar o que é operativo para servir ao contraste. (...) Tudo isto leva a
conclusão óbvia de que não se podem definir os grupos étnicos a partir de sua
cultura, embora, como veremos, a cultura entre de modo essencial na etnicidade”.
Em seu estudo sobre os Yaminawa****, Calávia-Saez nos diz
que, sendo estes em outros tempos os melhores artífices do machado de pedra,
eram muito visitados pelos outros grupos em busca de comércio e, na repetição
destas visitas, certos acontecimentos serviram para distinguir uns grupos de
outros, aos olhos dos Yaminawa: assim, uns foram chamados de gente-cotia,
Marinawa, porque comiam sua mandioca; outros Kaxinawa, gente morcego, porque
andavam de noite; Chaninawa, porque mentiam, Mastanawa porque não cresciam ;
Amawaka - capivaras - porque como estas andavam na lama; ou Saranawa, abelhas,
porque comiam os favos de mel.
“Uma caraterística
constante da história Pano tem sido a facilidade com que tem se reorganizado em
conjuntos de escala muito diferente, sem por isso incrementar seu despojado
aparato político: vemos que essa facilidade é afim ao proteismo do seu sistema
etnonímico. Yaminawa - como, em potência, qualquer etnônimo Pano - é assim um
coringa, mas que como qualquer coringa ganha em cada jogada um valor bem
definido. O etnônimo cria etnia, porque grupos definidos por uma opinião
externa - mas gerada a partir de um acervo simbólico que eles compartilham -
tendem a se decantar como unidades políticas de fato, e mesmo a assumir alguma
das caraterísticas diferenciais que essa opinião lhes atribuía. Os Yaminawa são
um fantasma dos índios "civilizados" e de seus brancos, que toma
figura humana e política na medida em que o centro da selva - seu nicho lógico
- é ocupado. Não é raro assim que as histórias orais Yaminawa pensem no seu
passado a partir de uma antinomia (yura-dawa) ou de um caos de grupúsculos, ou
de uma espécie de quiasmas semânticos de grupos étnicos. As identidades só
existem dentro de um sistema - de nomes. Se isso acontece com os Yaminawa, deve
acontecer também com os outros grupos do seu entorno: é uma visão nominalista
da etnologia Pano, que de um lado irrealiza algumas unidades étnicas a que a
bibliografia atribui certa solidez, e de outro propõe como estrutural um
aspecto atomizado que essa mesma bibliografia costuma ver como produto de um
desastre histórico, o boom da borracha”.
Como sobreviventes, hoje no Ucayali os chamados CASHIBO-CACATAIBO
existem em número de 1700 pessoas. Os missionários franciscanos tomaram contato
entre os anos 1727 e 1736 em Pampa del Sacramiento. No século 19, os
cashibo-cacataibo estavam relegados às zonas mais pobres do território
ucayalino devido a interesses econômicos de parte dos franciscanos. Com a chegada
do boom do caucho sua situação piorou ainda mais. Entretanto, no final deste
período, a relação com os senhores do caucho melhorou pelo fato de um menino Cashibo
foi tomado dos pais e educado por um fazendeiro. Este nativo se transformou em chefe
de quase todo o grupo. Na década de 1930, os cashibos trabalharam na produção
de ouro, sob as ordens de um patrão. Sua situação mudaria quando chegaram missionários
norte-americanos do Instituto Linguístico de Verão (SIL – Summer Institute of Linguistics), o qual construiu várias escolas
nas aldeias e capacitou professores indígenas. Nos anos 70 e 80 o grupo aderiu
ao regime peruano de Comunidades Nativas. Mesmo assim, a situação dos
cashibo-cacataibo se complicaria com a presença dos cocaleros e dos guerrilheiros do Sendero Luminoso.
A sociedade deste grupo étnico está estruturada sobre a
base de grupos patrilineares e patrilocais. Ademais está dividida em duas
partes: os consanguíneos e outros ligados ao parentesco de tipo dravídico.
Predomina o matrimônio simétrico de primos cruzados. A agricultura de roça e coivara,
a caça, pesca e o extrativismo; a criação de aves, animais menores e gado são as
atividades às quais se dedicam os cashibo-cacataibo. Outro grupo ocasionalmente
vende bananas, carne salgada e galinhas aos caminhoneiros. Também muitos deles
se acham nos garimpos de ouro, e na produção de medicina natural (por exemplo, o
sangue de grado). Nas últimas décadas do século 20 sua situação se viu
complicada pela presença de narcotraficantes, subversivos, colonos e exploradoras
de petróleo. Recentemente, os Cashibo apareceram em documentário da National Geographic sobre sua pajelança de cura com a Ayahuasca, juntamente com os
parentes Shipibo-Conibo, que são o maior Povo Pano no Peru na atualidade e representam
talvez a mesma estrutura de amálgama étnico que os Hunikuins outrora unificados
no Vale do Muru, no Médio Tarauacá.
Pensando na união dos povos de língua Pano, Haru Kuntanawa
é fundador do Projeto Corredor Pano, e vem exercendo representatividade
internacional a fim de criar uma estrutura de intercâmbio cultural entre estas
etnias que compartilham a mesma raiz identitária da Ayahuasca assim como vários
conhecimentos etnobotânicos e científicos além do mero tronco linguístico. Na
construção deste futuro é que se insere esta proposta: na Bolívia temos os
Pacaguara, Yaminawas, e os Chacobo; no Brasil temos os Kaxarari e os Karipunã,
a leste, e Matís, Marubos, Mayás, Nukinins, Poyanawas, Kulinas-Pano, Araras,
Mangeromas, Kuntanawas, Yawanawas, Korubos, Matsés, Jaminawas, Katukinas e
Hunikuins; no Peru, além de alguns destes, também Amahuacas, Atsahuacas,
Capanahuas, Sharanahuas, Yamiacas, Remos, Nawas, Marinahuas, Mastanahuas, Chacobos,
Shipibos, Conibos e Cashibos-Cacataibos. Reunidos os sobreviventes, refaz-se a
memória coletiva e se criam meios para uma defesa comum de seus direitos humanos e de
seus direitos indígenas relativos às manifestações culturais e à propriedade
intelectual de seu patrimônio ancestral e seus conhecimentos etnobotânicos, com
os quais poderão construir o caminho de seu futuro em comum na Amazônia do
século 21.
FONTES:
(*) “TASTEVIN, PARRISIER – Fontes sobre Índios e
Seringueiros do Alto Juruá”. Org: Carneiro da Cunha, Manuela. Série
Monografias. Museu do Índio – FUNAI. Rio de Janeiro, 2009. 248p.
(**) “Identificação Étnica, Territorialização e Fronteiras:
A Perenidade das Identidades Indígenas como Objeto de Investigação
Antropológica e a Ação Indigenista”. Por:
Silva, Cristhian Teófilo da. Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI,
Brasília, v.2, n.1, p. 113-140, jul.2005.
(***) CUNHA, Manuela Carneiro da. “Etnicidade da cultura
residual, mas irredutível.” In: CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do
Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.97-108.
(****) CALAVIA-SAEZ, Oscar. “O nome e o tempo dos Yaminawa
– Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre”. São Paulo, UNESP, 2006.
Serão eles os primeiros mensageiros da nova dimensão que aí vem? É
neste momento da história que os vemos aparecer no vulcão de sons e imagens
projetadas no espaço multidimensional da rede virtual de informações, e os
encontramos à mostra porque estão na grita por seus direitos de vida e
existência cultural que são interdependentes e que representam direitos
universais a serem esclarecidos à turba de alienados e aculturados bem como às
legiões de fraternidades de tradições eruditas. Estão na África, na Ásia, na
Europa e Oceania, mas mais significativamente brilham no continente americano como
sobreviventes de um colonialismo ainda em processo por parte dos Estados aqui
criados pelos descendentes dos europeus, onde sua resistência cultural esteve
amparada por uma rica etnobotânica florestal protegida por estes pajés
ameríndios como elo fundante de toda cosmologia e filosofia dentro destas suas sociedades
de cunho coletivista. A Mãe Natureza, a Mãe Terra, Pachamama, ganha voz a
partir destes sacerdotes e seus encantamentos rituais, e propõe a dimensão da
comunhão de pensamento positivo como nota musical em vibrato ou onda corretiva
pelas cordas matemáticas, e abre a consciência da Humanidade interconectada
para a força vital do planeta e a importância de estarmos aliados (e alinhados)
a esta.
Os pajés são vozeiros e ecos de vozes plasmadas pela
interação com um ambiente natural sadio, isto é, em equilíbrio consigo mesmo.
Enfrentam o desconhecido inalcançável dos meandros das estruturas jurídicas e
sociais dos colonizadores, assumem a camisa e a torcida da nação que deles se
aufere título de governo, irmanam-se entre tribos antes rivais ou muito
distantes, dizendo-se todos parentes, pelo entendimento da intenção mútua de
procurar meios que se defender da ignorância dos sistemas tecnocráticos
estabelecidos que pretendem controlar o incontrolável que é a Natureza pois os
que a admiram sabem o quão pequeno é o homem diante de seu Poder. Quem os ouve
sabe que guardam atrás de algum pessimismo espontâneo uma cega confiança em uma
força maior que a tudo pode transformar e reconfigurar, e esta é a força de sua
fé.
Mas serão os cultos xamânicos que reexistiram até hoje em
sua essência “cultos” à Natureza, no sentido de religião panteísta? Ou esses
rituais de cura com plantas sagradas que proporcionam identidade étnica aos
grupos que neles se associam são em verdade celebrações de vida, que não
cultuam a planta enteogênica em si, mas o dom de acessá-la e dela adquirir
sapiência, então portanto o possuem como dom sagrado e coletivo? Muitas vezes a
percepção do homem ocidental distorce o entendimento dos fatos de acordo como
ponto de referência: foi porque os invasores europeus temiam a um Deus Supremo
e seus castigos que entenderam, ao escutarem os índios tupinambás chamarem o
trovão de “Tupã”, que este seria o nome de seu Deus Supremo a quem temiam.
Hélène Clastres nos explica em “Terra Sem Mal”, página 16:
“Toda a religião indígena que não afirme explicitamente a
origem de `todas as coisas´ e, no ponto central da criação, a origem da própria
tribo como o ato voluntário de um deus, de uma relação entre divindades ou
entre seres humanos, forças divinizadas e a própria natureza deixa margem a uma
discussão interminável a respeito do sentido do próprio ato, ou da sequência de
atos de origem. São forças impessoais da natureza? Serão seres humanos punidos
por seus deuses ou sacralizados com o ancestrais místicos, devido ao seu gesto
de origem? É um ser divino, mas apenas ordenador e, depois distanciado dos
humanos, deixando a cargo de forças ou divindades intermediárias a
responsabilidade do cuidado do mundo e dos homens? É um ser divino pessoalizado
e atento aos humanos, no sentido cristão da ideia de deus? A respeito dos
tupis-guaranis sabemos que a interpretação de uma ideia de deus pessoal
intrigava os europeus desde os primeiros cronistas e missionários. Afinal, em
que criam os primeiros tupis? (...) Claude d´Abbeville: Embora os índios tupinambás tenham um juízo natural bastante belo,
nunca se viu nação mais rebelde ao serviço de Deus do que eles... Não creio que
haja nenhuma nação no mundo sem alguma espécie de religião, exceto os índios
tupinambás, que até hoje não adoraram a deus algum, nem celeste, nem terrestre,
nem de ouro, nem de prata, nem de pedra preciosa, nem de pau, nem nenhuma outra
coisa que seja. (...) ”.
Não eram idólatras os índios brasileiros nem o poderiam ser
pois as suas catedrais naturais eram os espaços de paisagem sagrada onde se
contavam as histórias de sua identidade cultural, e os impérios ameríndios que
resultaram de processos de urbanização de centros políticos e comerciais, e
onde portanto houve ingerência de elites étnicas nos próprios sistemas de
crença religiosa, aqui no Brasil não venceram as florestas que protegeram um
modo de viver autônomo e de base comunitária nas aldeias que contemplavam as
estrelas do hemisfério Sul e entendiam a vida na Terra como um reflexo dessa
força superior. Idólatras eram os nauás, os outros humanos, que demonstravam o
desequilíbrio de sua aflição ante os castigos eternos de um Deus ausente, e
descontavam seu nervosismo atávico em existências hipócritas, onde o
etnocentrismo cultural justificava toda sua veleidade passional de subjugar os
que deles consideravam inferiores. Idólatras eram os que punham seu amor nas coisas
para possuí-las e não para nelas compartilhar energias. Então a cura que esses
mestres pajés vem fazendo no mundo doentio da crise do consumismo é apontar um
outro parâmetro de entendimento e de relação humana com as energias em
circulação nas forças da Natureza que nos percorrem, já que somos em boa parte
H2O e osmoticamente nos unimos e repelimos continuamente na fricção do tempo
sobre nossas mentes. Re-pensar a si próprio (conhecendo-se a si mesmo) é o
primeiro passo para re-programar ou re-ordenar seu eu de modo direcionado a um
objetivo ensejado. E isto as plantas de poder dos antigos sábios ameríndios
permite acessar.
Os povos ameríndios da Amazônia persistem. Insistem em ser
como gostam de ser. Antes, quiseram amansá-los. Diziam assim: este é índio
manso, este é índio brabo... Para lutar por seus direitos civis, necessitaram
subjugar-se como mansos. Mas agora, o que vêem, é que esses nauás com que eles
convivem hoje na vizinhança das aldeias e nas cidades ribeirinhas, são os nauás
brabos. Porque já apareceram aqui os nauás mansos: aqueles de bom coração, sem
etnocentrismos, sem preconceitos culturais, que buscam ensinar coisas fraternas
e corrigir a si próprios pelos exemplos de vida harmoniosa em comunidade que
algumas aldeias ainda possuem. Talvez os “nauá” da Amazônia, hoje “filhos da
terra”, não saibam respeitar os habitantes autóctones como esses “nauá manso”,
que foram criados com acesso à muita cultura em núcleos civilizacionais
urbanos, e muito admiram os povos ameríndios pela profundidade de suas
tradições culturais. Mas a educação pode chegar para todos. Chega para o
morador da aldeia, como chega para o forasteiro, como chega para o ribeirinho:
surge da compreensão da necessidade de afinar os ouvidos para entender as
sutilezas de linguagem uns dos outros e alcançar uma compreensão diversa,
expandida. Afinal, a educação objetiva intrinsecamente a ética em nível do
indivíduo e em nível de sociedade, e a discussão dessa ética é a interface
entre o Homem Sadio e a Natureza Sanadora: e é isto o que os nossos pajés estão
tirando de letra!...
Unidos na força da Natureza-Mãe, dissolvidas as fronteiras
do amanhã, provam os Pajés a inteligência de suas plantas, celebrando nelas os
ancestrais e ícones do seu imaginário, e formam a corrente de energia
necessária ao chamado: faça-se a Luz!