segunda-feira, 16 de abril de 2012

Etnobotânica da Ayahuasca Indígena

O pajé-mirim André Ixã Domingos, conhecendo o Caupuri cultivado no Distrito Federal, em visita ao  Centro de Cultura Cósmica do Gama em 2008. 

A etnofarmacologia caracteriza os índios kaxinawás  (Hunikuin) do Estado do Acre como tradicionais bebedores do hayawaskha, cultura ancestral da região da Amazônia Ocidental. A malpighiácea Banisteriopsis caapi é conhecida pelo nome de huní (o “ser”), e classificada de acordo com suas propriedades no efeito do hayawaskha, de modo que podemos configurar as seguintes variedades:
 Banisteriopsis caapi var. icthys
Banisteriopsis caapi var. jagube
Banisteriopsis caapi var. mariri
Banisteriopsis caapi var. wakamayo

A variedade icthys é conhecida como baka huní (cipó-peixe) por ter uma luz branca como efeito da bebida.
A variedade jagube é conhecida como shawã huní pela luminosidade dourada, amarela. É mais comum na região do Estado do Acre, onde é conhecida como “caboclinho”, “ourinho”, “jagube”.
A variedade mariri é conhecida como shane huní pela luminosidade azulada. É mais comum no Estado de Rondônia, onde é empregado pelos vegetalistas com o nome de “mariri”, que em outras nações indígenas quer dizer “festa da natureza”.
A variedade wakamayo é conhecida como nê huní pela luminosidade avermelhada. É mais comum no Estado do Amazonas, onde é denominada cipó-arara, por ser mais amargo e vermelho que os demais hayawaskhas. É cipó de terras firmes, distantes dos igapós, no mais profundo das selvas. O nome “wakamayo” é o substantivo quechua para “arara”.
Estas variedades etnobotânicas podem estar relacionadas a características de solo: neste sentido, a var. icthys é a que aparece nos solos alagados, a var. jagube nos solos que alagam na época das grandes cheias dos rios, a var. mariri em solos mais bem drenados e a var. wakamayo em solos mais firmes.
Em 1905 o eminente cientista brasileiro João Barbosa Rodrigues publicou pela Imprensa Nacional seu “Mbaé Kaá – Tapyiyetá Enoyndaua” ou “A Botânica – Nomenclatura Indígena”, onde identifica a sabedoria do conhecimento botânico dos nativos do Brasil e mostra claramente que Caapi (Kaapiy) é gênero relativo às gramíneas (de Kaa, erva, pi, pele, y fina, “pele fina de ervas”), pelo que fica claro que Spruce ao querer informar-se do nome indígena do cipó da Banisteria foi desinformado, sendo claro a importância sagrada do nome entre populações indígenas: disseram-lhe que era “caapi” como quem diz “é mato”. A nomenclatura deveria então ser necessariamente corrigida, pois o termo indígena para lianas (daonde a palavra “cipó”) é ycypo. Curioso mencionar que Barbosa Rodrigues não soube identificar a espécie correspondente a “cypó kytyka” (“cipó que limpa”), o que nos remete ao aspecto purgativo do hayawaskha que estudamos. Haya = “amargo”, waskha = “corda, envira”: o nome hayawaskha em quêtxua (pronuncia-se assim o que lemos em espanhol quéchua) quer dizer mesmo Cipó Amargoso, sendo portanto mais um adjetivo do que um substantivo (o nome próprio de espíritos de muita força é sempre secreto, para ser pronunciado apenas nas ocasiões certas). 

 
No Iagé, a Banisteriopsis rusbyana (chacroponga), é a fonte de DMT do preparo , enquanto na Hayawaskha, a Psychotria viridis (chacruna) é quem complementa a transubstanciação na beberagem. 

Na última década os centros religiosos produtores de hayawaskha no Brasil se interessaram pelo cultivo do Caupuri, variedade de Banisteriopsis conhecida pelos Hunikuin como tõko huní (cipó grosso), por produzir massa vegetal mais rápido em climas mais adversos como os de outras regiões subtropicais. Ignora-se, entretanto, se o receituário de preparo tradicional do hayawaskha com tõko huní incluiria outras plantas para seu consumo sem contra-indicações específicas, pois os Mestres fundadores desses centros não o utilizavam, e essa inovação de ter o Caupuri como substitutivo é bastante controversa. Apesar da parte floral da variedade caupuri ser similar à das demais variedades (em Rondônia existe Caupuri de flor amarela, cultivado em Ji-Paraná, mas inexistem análises genéticas para se descobrir se este Caupuri da flor amarela é o original tõko huní e os de flor branco-rósea são já híbridos entre variedades). O fato é que os feixes vasculares das variedades mais tradicionais são bem diferentes dos da variedade Caupuri, e isso exige um processo de maceração também diferenciado para seu aproveitamento.
Segundo Wade Davis, discípulo do grande botânico norte-americano Schultes, que seguiu as pegadas de Spruce na investigação do Caapi, todas as plantas existentes na Amazônia sul-ocidental (Peru, Acre e Bolívia) são espécimes cultivadas, ou seja, são resultado de intercâmbios anteriores. Há uma região delimitada na Amazônia equatorial onde existem catorze variedades nativas de Banisteriopsis, e este foi o berço da Cultura do Iagé há cinco mil anos. O Iagé é resultado da cocção do caule macerado de Banisteriopsis caapi com as folhas do Banisteriopsis rusbyana (chacroponga), numa união adelfogâmica entre plantas da mesma família. A substituição da chacroponga pela chacruna (Psychotria viridis), uma rubiácea (da família portanto do café e do mulateiro), se deu a partir da margem direita do Grande Amazonas, e estabeleceu a Cultura da Hayawaskha (Aiauasca ou Ayahuasca) paralelamente à Cultura do Iagé hoje presente na Colômbia e Equador, e no noroeste do Amazonas brasileiro.
Conectados no processo histórico de valorização e resgate das culturas tradicionais do planeta e sua ampla diversidade, os indígenas brasileiros estão hoje dando os primeiros passos no caminho do reconhecimento internacional de sua ciência etnobotânica e seu potencial terapêutico para as mazelas tanto físicas quanto psicológicas da humanidade. Estão apresentando sua Ciência, e esperam ver respeitados tantos os seus direitos mais amplos, de utilização da própria cultura para benefício da coletividade, quanto aqueles mais específicos, quanto aos seus direitos intelectuais coletivos em relação à tamanha riqueza de conhecimentos.

Flores de Jagube: se transformam em sementes aladas para sua dispersão na natureza.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Cashibos, Kaxinawás e Hunikuins



No fundo do beco sem saída que forma o Brasil na fronteira com o Peru, na direção das nascentes do Juruá e de seus grandes afluentes, o Envira e o Tarauacá, um pouco por toda parte, nas margens dos pequenos cursos d´água, no meio da grande floresta equatorial, estendiam-se ainda há vinte anos (1905) numerosas aldeias indígenas que falavam em sua totalidade um dialeto pano, aparentado e quase idêntico ao do clã dos Índios Panos (tatu gigante) do rio Ucayali. Cada clã levava o nome de um animal, combinado à palavra “nawa”, que significa “povo”. Tínhamos assim a “povo sapo” ou Poya-nawa; a “povo sagui” ou Chipi-nawa; a “povo esquilo” ou Kapa-nawa; os “homens-javali” ou Yawa-nawa; os “homens-arara” ou Chauen-Nawa; os “marimbondos”, s “abelhas”, os “jacamins ou pássaros-trombeta” que se intitulavam Bina-nawa, Chara-nawa, Neha-nawa, etc. Contrastando com todos os outros, mais numerosos e mais trabalhadores também, havia os “homens-vampiro” ou Kachinaua. Eram esses Índios originários de seus irmãos de língua e de totem do Ucayali, os Kashibo, tão célebres na história das Missões do Peru oriental? A coisa é mais do que provável. Kashibo não é mais do que a forma plural de Kashi; o Ucayali é vizinho do Juruá; e é muito natural que os Kashibo, expulsos do Ucayali pelos peles-vermelhas evangelizados, tenham vindo buscar refúgio no Juruá, ainda inexplorado pelos brancos. Nossos Kashinawa seriam portanto descendentes dos massacradores de missionários e de viajantes que percorreram o Ucayali no século XVIII.”

Estas considerações do padre católico Constantin Tastevin*, em 1925, sobre os Kaxinawá que conheceu no Alto Rio Jordão, relaciona diretamente esta etnia no Vale do Juruá com os Kashibo do Vale do Ucayali. Estudos em lingüística podem demonstrar se há conexão direta entre um idioma Pano e outro, mas não o quanto tempo de dispersão essas diferenças indicam, se é que indicam, já que no caso dos clãs do tronco linguístico Pano, havia uma convivência compartilhada dentro de uma mesma região, em forma de confederação. Após o processo de guerra contra os índios para instalação dos seringais, muitos clãs reagruparam-se por meio de seus poucos sobreviventes, e reinventaram uma identidade singular como resultante desse processo histórico, como os Katukina e Jaminawa. Mas vejamos um outro relato pouco posterior de Tastevin para entender como funcionava a confederação Pano do Alto Rio Muru, e como o nome Hunikuin, hoje exclusivo dos outrora chamados Kaxinawá, seria nesse tempo um nome de união para todo Povo Pano: 
 
Os Huni-kuin – Antes da invasão dos seringueiros vindos do nordeste do Brasil, o Muru era habitado apenas por índios selvagens. Eles estavam mais concentrados aí do que em qualquer outro lugar. A maioria falava o dialeto Pano e se autodenominava Huni-kuin, “os verdadeiros homens”. Eles se dividiam em vários clãs, ora aliados, ora inimigos, o mais importante deles era o dos Kachinaua (os homens vampiros), que povoavam sobretudo os afluentes da margem direita do Médio Muru. Eles aceitaram inicialmente sem hostilidade a vizinhança dos seringueiros, mas pouco a pouco a cobiça, o ciúme, a grande diferença de mentalidade, de língua, de civilização, de religião e de costumes das duas raças fizeram com que conflitos, inicialmente parciais, estourassem em guerra sem perdão. Os caucheiros primeiramente, ou seja, os peruanos que exploravam pioneiramente a Castilloa elastica, que é preciso abater para utilizar; em seguida os seringueiros, ou seja, os brasileiros, a população estável, organizaram “correrias”, verdadeiras expedições armadas para desalojar os índios do seu lugar a fogo e sangue e permitir aos civilizados trabalhar em paz. (...)
Outros Huni-kuin moravam no Alto Muru e seus afluentes. Os mais importantes eram os Yamináua (os fabricantes de machados, Yami). Nas suas narrativas os Kachinaua atribuem sempre aos Yamináua as invenções da civilização indígena. Os Jaminauas, como dizem os brasileiros, seriam mais inteligentes, mais valentes, mais independentes, mais bem encorpados e também mais brancos que os Kachinaua. Foram eles que descobriram as propriedades purgativas, vomitórias e mágicas do líquido secretado pelo sapo kampô; ensinaram e difundiram o uso do suco de cipó ksya, ou simplesmente cipó (honi ou honê), que produz neles o efeito do ópio; ensinaram o uso do rapé e da planta que escurece os dentes; fabricavam machados de pedra, e é a eles também que devemos a introdução da noite (yams) no mundo. Os Kachinaua lhes davam o sobrenome de Sáinaua, os gritalhões. Estiveram sobre o Iboyassú, sobre o Jaminaua ou Motuya (rio das taiobas), afluente da margem direita do Alto Muru, ou Guaraciaba, e na foz do Muruzinho de cima, sobre a margem esquerda do Muru. Hoje eles estão para lá do Envira.
Assinalemos ainda os Hsu-naua (rãs) misturados aos Kachinaua; os Paranaua (enganadores, ou preparadores de emboscada) do rio Teixeira ou Marchachya (rio das pedras); os Bastanaua, que um seringueiro chamava Bátaraua, cujo nome significa “filhos da floresta”. Estes últimos se alimentavam, como Adão no paraíso terrestre, do que lhes oferecia a natureza e daquilo que podiam roubar aos seus vizinhos trabalhadores. Vivendo sempre à sombra das grandes florestas, e não vendo nunca o sol, por assim dizer, senão através das árvores, eles ficaram mais brancos do que os outros índios, e alguns deles tinham uma barba muito longa, o que é um fenômeno entre os peles-vermelhas. Os seus cabelos, ao sol, lançavam reflexos arruivados, o que foi a origem dos rumores de que havia, nas nascentes do MUru, uma raça de índios brancos, de barba comprida, cabelos loiros e estatura de gigante: trata-se tão somente de um engano, muito comum sob o sol quente dos trópicos. (...)Entre o Envira e o Muru existiam ainda, segundo a índia Parãnaua Tsátsa Wanó, os Kununaua, comedores de cogumelos (kunu, cogumelo), os Tuchi ou Tochinaua (tuchi, amarelo; tóchi, periquito verde com penas brancas nas asas); e os Kontanaua (konta, palmeira jaci, dá coco e tem as folhas grandes). Hoje todos estes índios se retiraram em direção às nascentes e à margem direita do Envira. Alguns Kachinaua habitam à margem esquerda do Tarauacá.”

Sobre os Kaxinawá do Brasil serem ou não descendentes de parte dos Cashibos do Peru dispersos ainda no século 18, e sobre o Povo Pano do Brasil ter sido uma confederação étnica Hunikuin, da qual os Kaxinawá herdaram o nome de Etnia Hunikuin na atualidade, será interessante mencionar aqui um artigo de Cristhian Teófilo da Silva, publicado pela Revista de Estudos e Pesquisas da FUNAI**:

A ideia da IDENTIDADE CONTRASTIVA, presente na literatura antropológica, aliada ao reconhecimento da agencialidade política dos índios, mesmo os INTEGRADOS, influiu decisivamente na adoção recente pelo órgão indigenista brasileiro da Convenção no.169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Entretanto, apesar de a IDENTIDADE CONTRASTIVA ser um conceito operacional, não se deve tomá-lo em si mesmo, cristalizando a própria identidade étnica como um objeto de análise estanque a partir do qual a identificação de um grupo étnico como povo indígena poderia ser alcançada objetivamente. Afinal, o conceito de identidade contrastiva promove uma polaridade analítica para a realidade das sociedades indígenas do Brasil. De um lado estariam positivamente estabelecidos os ÍNDIOS e de outro, negativamente, os BRANCOS. Entretanto, para o caso de ÍNDIOS MISTURADOS, colocar esses de um lado e BRANCOS de outro promove uma falsa interpretação da realidade, porque desconsidera outras categorias sociais, que a própria mistura de ÍNDIOS MISTURADOS prova existir. Sendo assim, ÍNDIOS e BRANCOS ou NÃO-ÍNDIOS, devem ser pensados enquanto construções sociais oriunda de contextos ideológicos específicos em que estas categorias referem-se mais a representações políticas de grupos de interesse locais e agências de contato do que a descrições literais de atores sociais concretos e heterogêneos. Nesse sentido, (...) concordo com Carneiro da Cunha (1987)***:

      A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto se torna cultura de contraste: este novo princípio que a subentende, a do contraste, determina vários processos. A cultura tende ao mesmo tempo a se acentuar, tornando-se mais visível, e a se simplificar e enrijecer, reduzindo-se a um número menor de traços que se tornam diacríticos. (...) Em suma, e com o perdão do trocadilho, existe uma bagagem cultural, mas ela deve ser sucinta: não se levam para a diáspora todos os seus pertences. Manda-se buscar o que é operativo para servir ao contraste. (...) Tudo isto leva a conclusão óbvia de que não se podem definir os grupos étnicos a partir de sua cultura, embora, como veremos, a cultura entre de modo essencial na etnicidade”.

Em seu estudo sobre os Yaminawa****, Calávia-Saez nos diz que, sendo estes em outros tempos os melhores artífices do machado de pedra, eram muito visitados pelos outros grupos em busca de comércio e, na repetição destas visitas, certos acontecimentos serviram para distinguir uns grupos de outros, aos olhos dos Yaminawa: assim, uns foram chamados de gente-cotia, Marinawa, porque comiam sua mandioca; outros Kaxinawa, gente morcego, porque andavam de noite; Chaninawa, porque mentiam, Mastanawa porque não cresciam ; Amawaka - capivaras - porque como estas andavam na lama; ou Saranawa, abelhas, porque comiam os favos de mel.

Uma caraterística constante da história Pano tem sido a facilidade com que tem se reorganizado em conjuntos de escala muito diferente, sem por isso incrementar seu despojado aparato político: vemos que essa facilidade é afim ao proteismo do seu sistema etnonímico. Yaminawa - como, em potência, qualquer etnônimo Pano - é assim um coringa, mas que como qualquer coringa ganha em cada jogada um valor bem definido. O etnônimo cria etnia, porque grupos definidos por uma opinião externa - mas gerada a partir de um acervo simbólico que eles compartilham - tendem a se decantar como unidades políticas de fato, e mesmo a assumir alguma das caraterísticas diferenciais que essa opinião lhes atribuía. Os Yaminawa são um fantasma dos índios "civilizados" e de seus brancos, que toma figura humana e política na medida em que o centro da selva - seu nicho lógico - é ocupado. Não é raro assim que as histórias orais Yaminawa pensem no seu passado a partir de uma antinomia (yura-dawa) ou de um caos de grupúsculos, ou de uma espécie de quiasmas semânticos de grupos étnicos. As identidades só existem dentro de um sistema - de nomes. Se isso acontece com os Yaminawa, deve acontecer também com os outros grupos do seu entorno: é uma visão nominalista da etnologia Pano, que de um lado irrealiza algumas unidades étnicas a que a bibliografia atribui certa solidez, e de outro propõe como estrutural um aspecto atomizado que essa mesma bibliografia costuma ver como produto de um desastre histórico, o boom da borracha”.

Como sobreviventes, hoje no Ucayali os chamados CASHIBO-CACATAIBO existem em número de 1700 pessoas. Os missionários franciscanos tomaram contato entre os anos 1727 e 1736 em Pampa del Sacramiento. No século 19, os cashibo-cacataibo estavam relegados às zonas mais pobres do território ucayalino devido a interesses econômicos de parte dos franciscanos. Com a chegada do boom do caucho sua situação piorou ainda mais. Entretanto, no final deste período, a relação com os senhores do caucho melhorou pelo fato de um menino Cashibo foi tomado dos pais e educado por um fazendeiro. Este nativo se transformou em chefe de quase todo o grupo. Na década de 1930, os cashibos trabalharam na produção de ouro, sob as ordens de um patrão. Sua situação mudaria quando chegaram missionários norte-americanos do Instituto Linguístico de Verão (SIL – Summer Institute of Linguistics), o qual construiu várias escolas nas aldeias e capacitou professores indígenas. Nos anos 70 e 80 o grupo aderiu ao regime peruano de Comunidades Nativas. Mesmo assim, a situação dos cashibo-cacataibo se complicaria com a presença dos cocaleros e dos guerrilheiros do Sendero Luminoso.

A sociedade deste grupo étnico está estruturada sobre a base de grupos patrilineares e patrilocais. Ademais está dividida em duas partes: os consanguíneos e outros ligados ao parentesco de tipo dravídico. Predomina o matrimônio simétrico de primos cruzados. A agricultura de roça e coivara, a caça, pesca e o extrativismo; a criação de aves, animais menores e gado são as atividades às quais se dedicam os cashibo-cacataibo. Outro grupo ocasionalmente vende bananas, carne salgada e galinhas aos caminhoneiros. Também muitos deles se acham nos garimpos de ouro, e na produção de medicina natural (por exemplo, o sangue de grado). Nas últimas décadas do século 20 sua situação se viu complicada pela presença de narcotraficantes, subversivos, colonos e exploradoras de petróleo. Recentemente, os Cashibo apareceram em documentário da National Geographic sobre sua pajelança de cura com a Ayahuasca, juntamente com os parentes Shipibo-Conibo, que são o maior Povo Pano no Peru na atualidade e representam talvez a mesma estrutura de amálgama étnico que os Hunikuins outrora unificados no Vale do Muru, no Médio Tarauacá.

Pensando na união dos povos de língua Pano, Haru Kuntanawa é fundador do Projeto Corredor Pano, e vem exercendo representatividade internacional a fim de criar uma estrutura de intercâmbio cultural entre estas etnias que compartilham a mesma raiz identitária da Ayahuasca assim como vários conhecimentos etnobotânicos e científicos além do mero tronco linguístico. Na construção deste futuro é que se insere esta proposta: na Bolívia temos os Pacaguara, Yaminawas, e os Chacobo; no Brasil temos os Kaxarari e os Karipunã, a leste, e Matís, Marubos, Mayás, Nukinins, Poyanawas, Kulinas-Pano, Araras, Mangeromas, Kuntanawas, Yawanawas, Korubos, Matsés, Jaminawas, Katukinas e Hunikuins; no Peru, além de alguns destes, também Amahuacas, Atsahuacas, Capanahuas, Sharanahuas, Yamiacas, Remos, Nawas, Marinahuas, Mastanahuas, Chacobos, Shipibos, Conibos e Cashibos-Cacataibos. Reunidos os sobreviventes, refaz-se a memória coletiva e se criam meios para uma defesa comum de seus direitos humanos e de seus direitos indígenas relativos às manifestações culturais e à propriedade intelectual de seu patrimônio ancestral e seus conhecimentos etnobotânicos, com os quais poderão construir o caminho de seu futuro em comum na Amazônia do século 21.

FONTES:
(*) “TASTEVIN, PARRISIER – Fontes sobre Índios e Seringueiros do Alto Juruá”. Org: Carneiro da Cunha, Manuela. Série Monografias. Museu do Índio – FUNAI. Rio de Janeiro, 2009. 248p.
(**) “Identificação Étnica, Territorialização e Fronteiras: A Perenidade das Identidades Indígenas como Objeto de Investigação Antropológica e a Ação Indigenista”. Por:  Silva, Cristhian Teófilo da. Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI, Brasília, v.2, n.1, p. 113-140, jul.2005.
(***) CUNHA, Manuela Carneiro da. “Etnicidade da cultura residual, mas irredutível.” In: CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.97-108.
(****) CALAVIA-SAEZ, Oscar. “O nome e o tempo dos Yaminawa – Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre”. São Paulo, UNESP, 2006.

Ver também: Ser Peruano, “Comunidades amazônicas en Ucayali”.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Os Últimos Sacerdotes da Natureza

foto de Ion David, Xinã Bena 2011, Cultura Hunikuin

Serão eles os primeiros mensageiros da nova dimensão que aí vem? É neste momento da história que os vemos aparecer no vulcão de sons e imagens projetadas no espaço multidimensional da rede virtual de informações, e os encontramos à mostra porque estão na grita por seus direitos de vida e existência cultural que são interdependentes e que representam direitos universais a serem esclarecidos à turba de alienados e aculturados bem como às legiões de fraternidades de tradições eruditas. Estão na África, na Ásia, na Europa e Oceania, mas mais significativamente brilham no continente americano como sobreviventes de um colonialismo ainda em processo por parte dos Estados aqui criados pelos descendentes dos europeus, onde sua resistência cultural esteve amparada por uma rica etnobotânica florestal protegida por estes pajés ameríndios como elo fundante de toda cosmologia e filosofia dentro destas suas sociedades de cunho coletivista. A Mãe Natureza, a Mãe Terra, Pachamama, ganha voz a partir destes sacerdotes e seus encantamentos rituais, e propõe a dimensão da comunhão de pensamento positivo como nota musical em vibrato ou onda corretiva pelas cordas matemáticas, e abre a consciência da Humanidade interconectada para a força vital do planeta e a importância de estarmos aliados (e alinhados) a esta.

Os pajés são vozeiros e ecos de vozes plasmadas pela interação com um ambiente natural sadio, isto é, em equilíbrio consigo mesmo. Enfrentam o desconhecido inalcançável dos meandros das estruturas jurídicas e sociais dos colonizadores, assumem a camisa e a torcida da nação que deles se aufere título de governo, irmanam-se entre tribos antes rivais ou muito distantes, dizendo-se todos parentes, pelo entendimento da intenção mútua de procurar meios que se defender da ignorância dos sistemas tecnocráticos estabelecidos que pretendem controlar o incontrolável que é a Natureza pois os que a admiram sabem o quão pequeno é o homem diante de seu Poder. Quem os ouve sabe que guardam atrás de algum pessimismo espontâneo uma cega confiança em uma força maior que a tudo pode transformar e reconfigurar, e esta é a força de sua fé.

Mas serão os cultos xamânicos que reexistiram até hoje em sua essência “cultos” à Natureza, no sentido de religião panteísta? Ou esses rituais de cura com plantas sagradas que proporcionam identidade étnica aos grupos que neles se associam são em verdade celebrações de vida, que não cultuam a planta enteogênica em si, mas o dom de acessá-la e dela adquirir sapiência, então portanto o possuem como dom sagrado e coletivo? Muitas vezes a percepção do homem ocidental distorce o entendimento dos fatos de acordo como ponto de referência: foi porque os invasores europeus temiam a um Deus Supremo e seus castigos que entenderam, ao escutarem os índios tupinambás chamarem o trovão de “Tupã”, que este seria o nome de seu Deus Supremo a quem temiam. Hélène Clastres nos explica em “Terra Sem Mal”, página 16:

“Toda a religião indígena que não afirme explicitamente a origem de `todas as coisas´ e, no ponto central da criação, a origem da própria tribo como o ato voluntário de um deus, de uma relação entre divindades ou entre seres humanos, forças divinizadas e a própria natureza deixa margem a uma discussão interminável a respeito do sentido do próprio ato, ou da sequência de atos de origem. São forças impessoais da natureza? Serão seres humanos punidos por seus deuses ou sacralizados com o ancestrais místicos, devido ao seu gesto de origem? É um ser divino, mas apenas ordenador e, depois distanciado dos humanos, deixando a cargo de forças ou divindades intermediárias a responsabilidade do cuidado do mundo e dos homens? É um ser divino pessoalizado e atento aos humanos, no sentido cristão da ideia de deus? A respeito dos tupis-guaranis sabemos que a interpretação de uma ideia de deus pessoal intrigava os europeus desde os primeiros cronistas e missionários. Afinal, em que criam os primeiros tupis? (...) Claude d´Abbeville: Embora os índios tupinambás tenham um juízo natural bastante belo, nunca se viu nação mais rebelde ao serviço de Deus do que eles... Não creio que haja nenhuma nação no mundo sem alguma espécie de religião, exceto os índios tupinambás, que até hoje não adoraram a deus algum, nem celeste, nem terrestre, nem de ouro, nem de prata, nem de pedra preciosa, nem de pau, nem nenhuma outra coisa que seja. (...) ”.

Não eram idólatras os índios brasileiros nem o poderiam ser pois as suas catedrais naturais eram os espaços de paisagem sagrada onde se contavam as histórias de sua identidade cultural, e os impérios ameríndios que resultaram de processos de urbanização de centros políticos e comerciais, e onde portanto houve ingerência de elites étnicas nos próprios sistemas de crença religiosa, aqui no Brasil não venceram as florestas que protegeram um modo de viver autônomo e de base comunitária nas aldeias que contemplavam as estrelas do hemisfério Sul e entendiam a vida na Terra como um reflexo dessa força superior. Idólatras eram os nauás, os outros humanos, que demonstravam o desequilíbrio de sua aflição ante os castigos eternos de um Deus ausente, e descontavam seu nervosismo atávico em existências hipócritas, onde o etnocentrismo cultural justificava toda sua veleidade passional de subjugar os que deles consideravam inferiores. Idólatras eram os que punham seu amor nas coisas para possuí-las e não para nelas compartilhar energias. Então a cura que esses mestres pajés vem fazendo no mundo doentio da crise do consumismo é apontar um outro parâmetro de entendimento e de relação humana com as energias em circulação nas forças da Natureza que nos percorrem, já que somos em boa parte H2O e osmoticamente nos unimos e repelimos continuamente na fricção do tempo sobre nossas mentes. Re-pensar a si próprio (conhecendo-se a si mesmo) é o primeiro passo para re-programar ou re-ordenar seu eu de modo direcionado a um objetivo ensejado. E isto as plantas de poder dos antigos sábios ameríndios permite acessar.

Os povos ameríndios da Amazônia persistem. Insistem em ser como gostam de ser. Antes, quiseram amansá-los. Diziam assim: este é índio manso, este é índio brabo... Para lutar por seus direitos civis, necessitaram subjugar-se como mansos. Mas agora, o que vêem, é que esses nauás com que eles convivem hoje na vizinhança das aldeias e nas cidades ribeirinhas, são os nauás brabos. Porque já apareceram aqui os nauás mansos: aqueles de bom coração, sem etnocentrismos, sem preconceitos culturais, que buscam ensinar coisas fraternas e corrigir a si próprios pelos exemplos de vida harmoniosa em comunidade que algumas aldeias ainda possuem. Talvez os “nauá” da Amazônia, hoje “filhos da terra”, não saibam respeitar os habitantes autóctones como esses “nauá manso”, que foram criados com acesso à muita cultura em núcleos civilizacionais urbanos, e muito admiram os povos ameríndios pela profundidade de suas tradições culturais. Mas a educação pode chegar para todos. Chega para o morador da aldeia, como chega para o forasteiro, como chega para o ribeirinho: surge da compreensão da necessidade de afinar os ouvidos para entender as sutilezas de linguagem uns dos outros e alcançar uma compreensão diversa, expandida. Afinal, a educação objetiva intrinsecamente a ética em nível do indivíduo e em nível de sociedade, e a discussão dessa ética é a interface entre o Homem Sadio e a Natureza Sanadora: e é isto o que os nossos pajés estão tirando de letra!... 
       
Unidos na força da Natureza-Mãe, dissolvidas as fronteiras do amanhã, provam os Pajés a inteligência de suas plantas, celebrando nelas os ancestrais e ícones do seu imaginário, e formam a corrente de energia necessária ao chamado: faça-se a Luz!