sábado, 25 de junho de 2011

Memória Pano, Geoglifos e o Paititi

Mapa do Império do Brasil onde consta o Rio Juruá como o antigo Amarumayu dos Inkas (fonte: Eldorado - Colombia)

No Brasil geoglifos podem ser encontrados, principalmente na região do Vale do Acre, entre os rios Acre, Iquiri e Abunã, na rota que vai de Rio Branco à Xapuri (já foram encontrados também em outras regiões do Acre, em Rondonia e no Rio Grande do Sul). Nesta região, foram encontrados apenas geoglifos geométricos - círculos, quadrados, retângulos e espirais.
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Os geoglifos acreanos foram descobertos no final da década de 70, quando o avanço das frentes de expansão agrícola do sul do Brasil rumo à Amazônia retirou a cobertura florestal de milhares de quilômetros quadrados. Essa mudança na paisagem possibilitou observar a existência de desenhos geométricos escavados em baixo relevo.
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Em 1977, como parte do inventário do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas da Bacia Amazônica (PRONABA), foi registrada pela primeira vez, nas imediações da sede da Fazenda Palmares, a ocorrência de estruturas de terra de forma geométricas, posteriormente chamadas de geoglifos. As pesquisas do PRONAPABA no Acre, coordenadas pelo do Prof. Dr. Ondemar Ferreira Dias Junior da UFRJ, contaram com a participação de Franklin Levy do IAB e Alceu Ranzi da UFAC.
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Atualmente estão registrados 110 pontos de ocorrência de Geoglifos no Estado, totalizando a existência de 138 figuras, distribuídas em uma área de 270 quilômetros entre Xapuri e Boca do Acre, no sul do Amazonas. Acredita-se que apenas 10% do total presumível de geoglifos foram localizados até agora, em parte devido à densidade da vegetação. Eles ainda são um grande mistério para os pesquisadores, mas crescem as possibilidades de terem sido construídos por uma civilização que viveu entre 800 e 2000 anos atrás.
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Sendo assim, o que esperamos as pesquisas arqueológicas permitirão revelar, em especial nos geoglifos que foram menos destruídos por antropismos, é que houvessem relações entre os habitantes desse complexo civilizatório de selva e o Império dos Inkas.
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- ¿Dónde está el Inca? - perguntara um espanhol. (Onde está o Inca?)
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- El Inca, la corona y muchas otras cosas más - respondera - están en la unión del rió Paititi y el rió Pamara (desaparecidos en el tiempo) a tres días del río Manu. (O Inca, a coroa e muitas coisas mais estão na união do rio Paititi e do rio Pamara (desaparecidos no tempo) a três dias do rio Manu.)
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Durante a febre de ouro da conquista espanhola do antigo Império do Tawantinsuyu, um dos comandantes, Pedro de Candia, lugar-tenente de Francisco Pizarro, foi o primeiro a aventurar-se pela floresta do Madre de Dios, procurando uma cidade de ouro chamada Ambaya. Saiu de Paucartambo no ano de 1538 com seicentos homens, avançando na selva tropical por cerca de 150 quilômetros. No entanto, foi atacado por ferozes nativos que o fizeram retornar a Cusco. Contava a lenda que havia uma cidade ali, a dez dias a leste de Cusco, fundada pelos deuses e que era irmã gêmea da capital do Império Inca - o nome quíchua Paikikin significa "igual a". Segundo essa crença existiria, ainda hoje, uma cidade subterrânea, no subsolo, em plena atividade. O senhor de Paititi (chamada assim pelos espanhóis), depositário da sabedoria oculta de uma civilização muito antiga, estaria esperando o momento certo de voltar ao mundo "de fora" para restabelecer a ordem que se rompeu no passado.
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Em 2001 o arqueólogo italiano Mario Polia descobriu, nos arquivos do Vaticano, uma importante carta que faz parte da História Peruana, uma coleção de volumes escritos entre 1567 a 1625. O manuscrito, do qual se desconhece autor e data, descreve a narração feita pelo jesuíta Padre Andrea Lopez ao Padre Geral da Companhia de Jesus (Claudio Acquaviva, de 1581 a 1615, ou Muzio Vitelleschi, de 1615 a 1645), provavelmente nos primeiros anos do século XVII, e foi enviado ao Papa Clemente VIII. Além de descrever uma cidade que seria Paititi, relata um "milagre" ocorrido lá e a conversão de pessoas vinda do Reino de Paititi.
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Serge Huhn, em "Homens e Civilizações Fantásticas" (Hemus, 1971), assinala as pesquisas dos esoteristas europeus sobre o Paititi:
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"O segredo dos Andes : tal é o titulo de uma obra inglesa muito curiosa (...) , obra de alto dignitário de diversas sociedades secretas iniciáticas , entre elas a Ordem Antiga da Ametista e a Ordem da Mão Vermelha - dois ramos sob a proteção dos Rosa-Cruzes. O autor, conservando o anonimato, revela apenas o seu prenome: "Irmão Philippe". Este testemunho extraordinário traz incriveis revelações sobre a sobrevivência secreta, na América pré-colombiana, de toda a herança espiritual, cientifica e oculta, tanto da Lemúria quanto da Atlântida. O saber dessas duas civilizações lendárias estaria conservado na cidade perdida. Sabemos assim o que era o gigantesco disco de ouro translúcido que está conservado no templo mais sagrado dos Incas, suspenso ao teto por cordas de ouro puro. Este disco provinha da antiga Lemúria, de onde teria trazido por um casal divino em uma nave aérea chamada Agulha de Prata.
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"Diante dêsse disco, sobre um altar de pedra , brilhava a luz branca eterna da chama cristalina Maxin, a luz divina ilimitada da criação. Este disco não era sómente  objeto de adoração e a representação simbólica do Sol, mas também instrumento cientifico cuja pujança era segredo da antiga raça dos tempos passados. Usado  em conexão com um sistema de espelhos de ouro puro, de refletores e de lentes, curava os doentes que estavam no templo de luz. Além disso, era um ponto focal de concentração de qualidade dimensional; batido de certo modo, emitia vibrações que podiam provocar terremotos e mesmo mudança na rotação da Terra. Regulado no comprimento de onda de um indivíduo, particular, permitia-lhe transportar-se para tôda parte que quisesse, simplesmente pela representação mental do lugar a que desejasse ir".
Os espanhóis jamais puderam apoderar-se do disco de ouro; encontraram o templo vazio. O disco tinha sido cuidadosamente escondido num monastério subterrâneo dos Andes, situado perto do lago Titicaca. Ali estaria ainda.
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Em 1957, a Ordem da Mão Vermelha enviou uma expedição arqueológica , sob a direção do "Irmão Phillipe". Após ter estudado metódicamente o planalto de Marcahuasi , de estranhos rochedos esculpidos , esta expedição se dirigiu para o Este, em direção das cidades misteriosas de Paititi , para as cidades atlantes escondidas no coração do "Inferno Verde" da selva sul-americana. A 10 de julho de 1957 ela descobriu ruinas fantásticas, com extraordinários monumentos, como uma rocha toda coberta de inscrições em lingua desconhecida, e petroglifos. Uma das figuras simbólicas representava um rapaz com capacete mostrando o Ocidente, direção da cidade perdida e da Atlântida submersa. As lendas da tribo Machiguenga , tribo indigena que ocupa o território onde se encontraram as ruinas, indicavam  -   pormenor capital  -   contatos que seus antepassados tiveram com os "povos do céu" ; eles narravam a série de catastrofes que se tinham produzido no curso dêsse longinquo passado, época sem dúvida do afundamento da Lemúria, do levantamento dos  Andes e de Tiahuanaco a muitos milhares de metros acima do nivel do oceano à margem do qual tinha sido construida a "cidade dos gigantes".
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A procura dessa civilização perdida nunca cessou. Só nos anos sessenta do século 20, o peruano Carlos Neuenshwander Landa realizou vinte e sete expedições em busca de Paititi, sobretudo na área do Parque Nacional do Manu. Em 1970 três aventureiros, o americano Nichols e os franceses Debrù e Puel desapareceram na zona do Parque Nacional do Manu procurando por Paititi. Em 1979, o casal franco-peruano Herbert e Nicole Cartagena, guiados pelo peruano Goyo Toledo, descobriram uma localização incaica, situada junto ao Rio Mameria, afluente do Nistron, por sua vez, afluente do Alto Madre de Dios, o que foi relatado em um livro, "Paititi, dernier refuge des Incas" (1981). Em 1980, Goyo Toledo retornou, a pé, até Mameria, a primeira pessoa a fazê-lo desde a época dos Incas. Sucessivos estudos conduzidos pelo explorador americano Gregory Deyermenjian tem comprovado que Mameria, mesmo não sendo Paititi, era um importante posto avançado incaico no vale do Rio Nistron para abastecer de coca o Império. Gregory Deyermenjian realizou numerosas expedições na região de Pantiacolla, remoto território entre Cusco e Madre de Dios. Descobriu, estudou e percorreu um antigo caminho inca pavimentado em pedra que, desde a Meseta de Pantiacolla conduz até a selva mas que, ainda não foi explorado completamente. Talvez lá encontremos indícios mais conclusivos sobre as relações estabelecidas em tempo do Império dos Inkas com as nações da selva amazônica.
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Neste ano do Centenário da Descoberta das Ruínas de Machu Picchu no Peru, e baseando-me no fato histórico de que  foi no século 14 que o quinto Inka, Cápaq Yupanki (o mesmo que deu início a uma linhagem usurpadora, havendo conspirado contra seu irmão Tarko Wamán, herdeiro do Império), ordenou as primeiras entradas na região de selva para plantio de coca na área de Madre de Dios, quero propor a tese de que o nome de Paititi representa não uma cidade, mas todo o complexo civilizatório do qual hoje seus restos mais visíveis são os geoglifos encontrados no Brasil e Bolívia. Este complexo civilizatório seria composto por clãs tribais, uma confederação desses clãs. Ora, um clã constitui-se num grupo de pessoas unidas por parentesco e linhagem e que é definido pela descendência de um ancestral comum. Mesmo se os reais padrões de consangüinidade forem desconhecidos, não obstante os membros do clã reconhecem um membro fundador ou ancestral maior. Como o parentesco baseado em laços pode ser de natureza meramente simbólica, alguns clãs compartilham um ancestral comum "estipulado", o qual é um símbolo da unidade do clã. Quando este ancestral não é humano, é referenciado como um totem animal. No caso, esta confederação de clãs que existia até o século 14, teria sofrido desde então uma grande diáspora e consiste no que hoje conhecemos como Povos Pano. Muitos buscaram novas formas de unificação, em especial os Shipibo e Hunikuin, que hoje vem a ser os grupos mais numerosos no Peru e Brasil, respectivamente.
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A propósito, um relato do peruano Garcilaso de la Vega no século 16 nos é muito interessante por explicar como a forma com que os espanhóis passaram a celebrar a festa do Corpus Christi em Cusco desde 1571 esteve relacionada com um ancestral cortejo de clãs tribais que se realizava na capital do Império dos Inkas:
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" Os caciques de todo o distrito daquela grande cidade vinham até ela a solenizar a festa, acompanhados de seus parentes e de toda a gente nobre de suas províncias. Traziam todas as galas, ornamentos e invenções que no tempo de seus reis Inkas usavam na celebração de suas maiores festas. (...) ; cada nação trazia o brasão (desenho) de sua linhagem, de onde se prezava descender.
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Uns vinham (...) vestidos com pele de puma, e suas cabeças encaixadas nas do animal, porque se prezavam descender de um puma. Outros traziam as asas de uma ave muito grande a que chamam condor colocadas nas costas, como as que usam os anjos, porque se prezam descender daquela ave. E assim vinham outros com outras divisas pintadas, como pontes, rios, lagos, serras, montes, cavernas, porque diziam que seus primeiros antepassados saíram daquelas coisas. Traziam outras divisas estranhas, como as roupas chapeadas de ouro e prata. Outros com guirlandas de ouro e prata; outros vinham como monstros, com máscaras feíssimas, e nas mãos peles de diversos animais, como que os houvessem caçado, fazendo grandes gestos, fingindo-se loucos e tontos, para agradar a seus reis de todas as maneiras, uns com grandezas e riquezas e outros com loucuras e misérias, e cada província com o que lhe parecia que era melhor invenção, de maior solenidade, de maior fausto, de maior disparate e loucura, que compreendiam bem que a variedade das coisas deleitava a vista e acrescentava gosto e prazer aos ânimos. Com estas coisas, e outras muitas que se podem imaginar, que já não acerto a descreve-las, solenizavam aqueles índios as festas de seus reis. Com as mesmas (aumentando-as em tudo o mais que podiam) celebravam em meus tempos a festa do Santíssimo Sacramento.
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O cabildo da igreja e o da cidade faziam por sua parte o que convinha à solenidade da festa. Faziam um tablado no átrio da igreja, na parte de fora que sai à praça, onde punham o Santíssimo Sacramento em uma formosa custódia de ouro e prata. O cabildo da igreja se colocava do lado direito, e o da cidade do lado esquerdo. Junto a eles ficavam os incas que haviam sobrado do sangue real, para honrar-lhes e fazer alguma demonstração de que aquele Império era deles.
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Os índios de cada localidade passavam com suas andas, com toda sua parentela e acompanhamento, cantando cada província em sua própria língua materna, e não na língua geral da corte (quíchua), para diferenciarem-se umas nações das outras. Levavam seus tambores, flautas, buzinas e outros instrumentos rústicos musicais. Muitas províncias levavam suas mulheres depois dos varões, que lhes ajudavam a tocar e cantar. Os cantares que iam dizendo eram em louvor de Deus Nosso Senhor, dando-lhe graças pela mercê que lhes havia feito em traze-los a seu verdadeiro conhecimento. Também rendiam graças aos espanhóis, sacerdotes e seculares, por haverem lhes ensinado a doutrina cristã (sic). Outras províncias iam sem mulheres, apenas os varões; enfim, era tudo semelhante ao uso no tempo de seus reis.
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(...) Entrava cada nação por sua antiguidade (de acordo como foram conquistados pelos Inkas), que os mais modernos eram os primeiros, e assim os segundos e terceiros, até os últimos, que eram os incas. Estes iam adiante dos sacerdotes, em pelotão de menos gente e maior pobreza, porque haviam perdido todo seu Império, e suas casas e herdades, e suas propriedades particulares".
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Não deixem de ler "O inca pano: mito, história e modelos etnológicos", de Óscar Calavia Sáez. Visitem o site Geoglifos, e leiam também "Geoglifos do Acre - Novos Desafios para a Arqueologia Amazônica", de Denise Schaan, Miriam Bueno e Alceu Ranzi. No blog Mensageiros do Amanhecer, conheçam mais sobre os Geoglifos de Rondônia.
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Joaquim Cunha da Silva apresenta em seu blog Eldorado-Paititi a tese da correlação entre os achados dos geoglifos e o Paititi. Leiam mais sobre o Paititi em FANTASTIPEDIA. Os artigos "L'interminabile ricerca del Paititi e l'analisi del manoscritto di Andrea Lopez", e "Il Regno Amazzonico del Paititi" podem ser conhecidos no site de Yuri Leveratto.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Xinã Shabá


XINÃ SHABÁ - NOVA AURORA NO HORIZONTE PANO
por Eduardo Paemuka
Outrora havia pelas veredas aquáticas da floresta imperial, no sertão verde do que hoje vem a ser a Amazônia Ocidental brasileira, uma confederação de clãs tribais, com uso de semelhante (e semelhantes) raiz linguística e fundamentos culturais no concernente à sobrevivência e permanência em uma terra já ancestral. Agora conhecidos como povos Pano, nomeação moderna que procede apenas do nome particular de um extinto clã ligado ao grupo Shipibo ou Shipinawa, em verdade todos oriundos de um antigo complexo civilizacional que formava o que os primeiros narradores europeus conheceram como o Paitite, de cuja existência comprovada apenas restam alguns geoglifos curiosos na selva boliviana, com poucos achados na margem oeste do Rio Acre, o que indica que a dispersão do Paitite, quando do avanço dos Inkas na região do Antisuyu, ocorreu na direção das cabeceiras do Purus e Juruá, possivelmente por volta do século 13 segundo a cronologia peruana. Só seriam atingidos pela presença espanhola a partir do século 18, sendo que na virada do século 19 para o 20 é que o processo etnocida da empresa colonista republicana atingiu seu ápice, extinguindo-se então cerca de dois terços dos clãs Pano mesmo com a amálgama entre sobreviventes de aldeias destruídas pela ação de peruanos e brasileiros.

Estudados pela Etnografia brasileira na obra basal do historiador cearense Capistrano de Abreu, o "Rã-Txá Huni-Kuin", gramática que em 2014 completará um centenário de sua publicação pioneira (ocasião propícia para uma nova edição, em projeto para incluir agora uma avaliação por parte de membros de sua etnia que já não apenas escrevem e leem em sua língua materna mas também são professores universitários, como os amigos Joaquim Maná e Ibã Sales), os HUNIKUIN ou Kaxinawá são o mais numeroso povo de língua Pano no Brasil. Em maio de 2011, na Aldeia Maehundua, na Terra Indígena Kaxinawá Seringal Independência, o festival cultural hunikuin promovido pela associação indígena local mobilizou o município acreano de Jordão para a vinda do propalado etnoturismo, em desenvolvimento por interesse das próprias comunidades em fazer com que seus produtos culturais alcancem o resto do mundo, e sejam símbolos de uma Cultura diferenciada, de base agroflorestal, espiritualista e com práticas terapêuticas próprias, que quer se incluir como representante da diversidade cultural planetária e sua correspondente prática de cidadania. XINÃ BENÁ, o nome do festival, significa tanto um novo pensamento quanto um novo tempo. Com essa invocação começou a família Hunikuin a proposta de um aprimoramento de sua sistemática de administração e busca de resultados para a vida das suas coletividades.

O passado, o que procedeu do antigo sistema autoritarista em que as primeiras lideranças indígenas no Acre foram formadas, no começo dos anos 80, e as resultantes falhas na administração do movimento indígena acreano como um todo, pode ser considerado superado. A presença de Bira Yawanawa e Yube Hunikuin, dois assessores especiais do governo da florestania, bem como da secretária de Turismo do governador Tião Viana, Ilmara Rodrigues Lima, trouxe um reforço especial para as propostas do "Xinã Bená" anunciado em Jordão. A reunião de muitos pajés jovens, mulheres artesãs e lideranças em formação, agentes agroflorestais e de saúde, transmitiu ao acontecimento a aura necessária de renovação de ares. A aldeia Lago Lindo, antes formada no antigo campo de gado do Seringal Independência, que o cacique-geral Siã Kaxinawá adquiriu para transformar em terra indígena a partir de uma premiação no exterior, localizada por ele junto a três lagos formados em uma curva perdida do Alto Tarauacá, morada de profundos encantos da Natureza, ela própria já não existia mais enquanto aldeia: teve de ser reinventada, reerguida, recontextualizada. De modo surpreendente conseguiu ser aprontada em curto espaço de tempo, para ser reinaugurada neste festival, o que demonstrou o esforço e empenho dos Hunikuin do Jordão.

Abrilhantaram a festa os amigos Kuntanawa, que atravessaram a mata desde sua terra no Alto Rio Tejo, para chegar no município de Jordão e de lá embarcarem para Maehundua. Haru Xinã é seu cacique-pajé, e como pajé-cantor assegura momentos de muita boa energia nos trabalhos com o Nishi Pae, a sagrada Ayahuasca. Além do festival de seu próprio povo, que vem em julho próximo, é Haru o responsável pelo projeto cultural do Corredor Pano junto ao Instituto Guardiões da Floresta, e portanto vem exercendo uma representatividade cultural de longo alcance. Foram os Kuntanawa os mais atingidos pelo processo etnocida na ocupação do Vale do Juruá, e hoje encabeçam o movimento pela identidade cultural dos povos de língua Pano pois são os principais interessados nesse resgate, já que havendo perdido língua e iconografia próprias, dependem dos aportes dos grupos mais próximos, como os Hunikuin e Yawanawa. Redescobrir e reinventar sua etnia, é um exercício conhecido por todas as nações da floresta, pelo prazer da biodiversidade provocando a etnodiversidade, com o grande alicerce, no caso dos clãs de língua Pano, de um instrumento de estruturução da identidade étnica que pode ser considerado essencial: a bebida da Ayahuasca, o Shure do Nishi Pae. Nesta comunhão indígena reside o mistério ancestral que os antigos pajés legaram para, afinal, alcançarmos a chegada de uma nova manhã, um feliz "Xinã Shabá".

Haux, haux, haux !!!

domingo, 20 de fevereiro de 2011

A Invenção da Ayahuasca

Haru Kuntanawa, jovem liderança indígena do Acre, é um dos embaixadores dos povos indígenas pela Paz Mundial na ONU, fundador do Instituto Guardiões da Floresta e etnoterapeuta (foto de Fabíola Ortiz, vejam seu blog)

A INVENÇÃO DA AYAHUASCA
por Eduardo Bayer Neto -  engenheiro florestal, funcionário do Departamento de Diversidade Socioambiental e Cultural - Fundação de Cultura Elias Mansour, Acre.

Quando em 2003 a UNESCO adotou a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, se valorizou o processo de institucionalização (invenção) da Cultura a partir dos interessados, o que representou uma pequena revolução conceitual, segundo Jean-Pierre Chaumeil, porque as visões anteriores sobre patrimônio privilegiavam sobretudo os aspectos materiais das coisas – no novo conceito, as tradições e expressões orais, danças e temas musicais, e os rituais e práticas sociais puderam ser incluídos na categoria de Patrimônio Cultural Imaterial.

Aqui no Acre comemora-se neste 2011 os vinte anos da Primeira Conferência Internacional da Ayahuasca, realizada na UFAC sob a batuta de Clodomir Monteiro. Se naquele tempo ainda se esboçava uma tentativa de estabelecimento de relações inter-institucionais entre as diversas agremiações religiosas da Ayahuasca, hoje esta articulação política entre elas em defesa de interesses comuns, especialmente quanto a regulamentação nacional do uso da bebida, é claramente imprescindível. Em busca do reconhecimento do valor cultural da Ayahuasca, assim como na vizinha nação peruana, no Acre esta foi declarada Patrimônio Cultural e semelhante encaminhamento feito ao Ministério da Cultura. A respeito, observe-se que Patrimônio Cultural Imaterial se define como:

“as práticas, representações, expressões, conhecimentos, assim como os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais associados, que as comunidades, os grupos e eventualmente os indivíduos reconhecem como parte de seu patrimônio cultural. Transmitido de geração em geração, este patrimônio cultural imaterial é recriado de maneira permanente pelas comunidades e grupos em função de seu meio, de sua interação com o entorno e de sua história. Lhes outorga um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo assim a promover o respeito da diversidade cultural e da criatividade humana”.

Em relação ao registro da Ayahuasca como patrimônio imaterial da nação brasileira, entendo como o mais adequado explicitar-se que a “Etnoterapêutica da Ayahuasca” é esse Patrimônio Cultural Imaterial. Por que utilizar esta terminologia e não meramente “Cultura da Ayahuasca”? Porque a Ayahuasca não pode ser entendida apenas como “cultura religiosa”: ela é, mais intrinsecamente, uma etnoterapêutica, uma práxis de etnoterapia. Essa foi sua função originária no uso ancestral indígena: organizar a etnia e mante-la. A Ayahuasca foi instrumento de construção e manutenção de identidade étnica entre muitas populações ameríndias. Seu cunho etnoterapêutico antecede ao uso religioso, que surgiu no Acre a partir da década de 1930 com a adaptação dessa etnoterapêutica tradicional ao seu uso por comunidades cristãs. Parece que os cientistas mais bem intencionados acabaram obliterando suas visões com tentativas de descrição do fenômeno religioso, sua história e trajetória, e deixaram em segundo plano o seu cunho etnoterapêutico quando de sua arregimentação em defesa da liberdade do uso da Ayahuasca.

Privilegiado o argumento da liberdade religiosa em detrimento do argumento da proteção da diversidade cultural, o pessoal se viu em dificuldades para obter uma conciliação ou termo conciliatório por parte das entidades usuárias da Ayahuasca no Brasil, quando do encerramento das reuniões do Grupo Multidisciplinar de Trabalho promovidas pelo Conselho Nacional Anti-Drogas, CONAD, órgão do Ministério da Justiça encarregado de enquadrar o funcionamento desses grupos consumidores da bebida. As lideranças indígenas do Acre, segundo os organizadores do GMT, não foram convidadas a tais discussões por instrução de indigenistas ligados ao governo estadual, que aparentemente consideraram que, como o uso da bebida nas aldeias ou por parte dos indígenas não possui concreta possibilidade de criminalização, melhor seria se eximir das discussões do chamado “pessoal das igrejas”.

Uma entrevista do Jornal Varadouro em 1981 com o Conselheiro José das Neves, um dos fundadores do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal, diz assim:

Varadouro: O Daime vem da mata e a mata está acabando por aqui, como vai ser?

José das Neves: Se acabar com a mata, com a floresta, pode acabar com a humanidade. Pode acabar com todo ser vivente, porque nos vivemos pela floresta e a floresta por nós. Se terminar com a floresta, então pode terminar com a humanidade que não vale mais nada. Sabe porque? - A floresta nos dá vida e a vida sopra de lá e cobre o mundo.

Varadouro: E os índios?

José das Neves: Eu creio que ele seja um brasileiro superior a nós. Eles vêm do solo e nós viemos arranjados de outros lugares, porque quando foi descoberto o Brasil eles já estavam aqui, já falavam com a natureza.

Fez notória falta a participação do pensamento indígena sobre algo tão relevante em sua cultura tradicional, gerando-se uma resolução “capenga” do CONAD, que por exemplo autorizou como legítima apenas a ayahuasca feita com dois ingredientes vegetais, o que seria motivo de readequação extrema por parte de um dos grandes centros produtores, e, por outra, indica ignorarem que a ayahuasca indígena pode possuir outras combinações. Quanto às recentes determinações do IMAC, Instituto de Meio-Ambiente do Acre, que regulamenta o volume anual de matéria-prima da ayahuasca a circular no estado por parte de cada instituição produtora/consumidora, pode-se dizer que tais medidas a nível local decorrem ainda da inconsistência da última resolução do CONAD em sistematizar o controle dessa atividade econômica, que possui implicações ambientais claras e afinal compõe as principais atividades de gestão das entidades usuárias, falta de legislação específica que poderia estar favorecendo a prática de um mercado negro da bebida, no Brasil assim como exterior.

Talvez se houvesse sido colocada em primeiro plano a Etnoterapêutica da Ayahuasca, e não as culturas religiosas dela advindas, a discussão legal já estaria em outro patamar, em instâncias da UNESCO e da Organização Mundial da Saúde. No século 21 já possuímos mecanismos internacionais de proteção da diversidade cultural, verbas para a pesquisa científica dessa etnoterapêutica, redes sociais nos meios acadêmicos, para se pleitear, mais que a liberdade religiosa, o reconhecimento do valor etnoterapêutico da Ayahuasca, o que as gerações antes de nós não possuíam oportunidade e resguardavam-se de publicar temendo serem responsabilizados por “curandeirismo”, prática esta prescrita pelo Código Civil brasileiro. Fazendo assim, para o exercício dessa etnoterapêutica poderão se credenciar aqueles etnoterapeutas idôneos, capacitados pela experiência de vida, dedicação e engajamento ético, os quais porventura venham a estabelecer um conselho próprio e assim conduzir suas questões comuns. 

Por exemplo, ao se definir que o "corpus" doutrinário de determinado Mestre consiste em seu método etnoterapêutico, do qual parte essencial das instruções não são transmitidas aos seguidores, pode-se favorecer que apenas possam se apresentar com o método e o acervo a ele referente aqueles grupos que demonstrarem merecer essa chancela por parte dos mantenedores de sua tradição. Se determinada instituição usuária alhures registrada como centro distribuidor de ayahuasca tiver alguma circunstância de problemas judiciais, não poderá alegar apenas a "liberdade religiosa" para requerer a defesa da comunidade ayahuasqueira, mas deverá demonstrar a legitimidade de seu desempenho etnoterapêutico, favorecendo-se com isso a sistematização desse trabalho especial em termos de compromissos éticos. Será muito melhor de como está hoje disposto, quando a fim de se atender a demanda burocrática apenas instituições que declarem formalmente possuir cunho religioso (objetivando assim sua liberdade de culto) podem ser habilitadas pelas autoridades policiais, pois desse modo os verdadeiros compromissos ideológicos das mesmas poderão ser falseados a título de se atender uma letra da lei, e a exigência de acompanhamento etnoterapêutico menosprezada. Encaremos de frente o tema: as culturas da ayahuasca não são todas religiosas, mas sim etnoterapêuticas. E é como tal que devem ser valorizadas.

O termo Etnia não deve ser confundido com Cultura e com o conceito de Raça, mas tem a ver com o "senso de diferença". Etnia é a população ou grupo social que, com relativa homogeneidade cultural e linguística, compartilhando história e origem comuns, é considerado como unidade dentro de um contexto de relações entre grupos similares ou do mesmo tipo, e cuja identidade é definida por contraste em relação a estes. Portanto, quero dizer Etnoterapêutica a Ayahuasca sem ressaltar se a Tradicional ou Amazônica, mas também quando aplicada às "novas tribos urbanas", aos novos contextos de interação cultural. Uma Etnoterapêutica que se molda à realidade do grupo com a qual está sendo trabalhada. Exatamente o que lemos na definição de Patrimônio Cultural Imaterial: é recriado de maneira permanente pelas comunidades e grupos em função de seu meio, de sua interação com o entorno e de sua história”.
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Fique bem claro que a função etnoterapêutica da Ayahuasca antecede a sua função religiosa, que foi instituída a partir da formação do trabalho do Mestre Irineu aqui no Acre. Essa função etnoterapêutica é a grande base, enquanto a função religiosa uma já adaptação ao uso da bebida por comunidades cristãs. E a partir daí, a "reinvenção" do uso da ayahuasca nos centros urbanos é um movimento de adaptação do uso da bebida por parte das "novas tribos". Onde, seguramente, a Ayahuasca novamente é um forte instrumento de construção de uma (nova) identidade étnica. Portanto, é um movimento cultural que deve ser acompanhado com atenção, não na esfera do Ministério da Justiça, como nos tempos passados, mas junto ao Ministério da Cultura, onde receba a colaboração técnica e científica para poder organizar tanto o resgate histórico quanto a sua promoção enquanto manifestação da diversidade amazônica. Afinal, a etnoterapêutica tradicional indígena do Acre, reinterpretada por uma nova geração de pajés-cantores, como Haru Kuntanawa, ShaneIhu Yawanawa, Fabiano Txaná Banê e José Banê Sales, dentre outros, vem encontrando um público cada vez maior em comunidades místicas do Brasil, Canadá e Europa. Através desse exemplo positivo de responsabilidade étnica tanto quanto ambiental é que deverá ser construído o futuro da Cultura da Ayahuasca no Brasil. 

Entendendo-se aqui a Cultura da Ayahuasca como Etnoterapêutica, maior do que as culturas religiosas que a compõem, quero acreditar que a declaração de ser Patrimônio Cultural Imaterial, do Brasil e da humanidade, possa ser-lhe outorgada em breve, representando esta conquista um modelo para a construção de um futuro melhor, para a Amazônia e todo o mundo. A legislação ambiental se encarregará de proteger o banco genético de Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis, ao passo que a legislação cultural poderá balizar o uso do patrimônio cultural comum às etnias das florestas da Amazônia Ocidental assim como à nação brasileira que a recebeu como verdade eterna e elixir santo.   

Para se ler -
“A Reinvenção do Uso da Ayahuasca nos centros urbanos”, por Beatriz Caiuby Labate. Editora Mercado de Letras, 536 pp. Prêmio de melhor Tese de Mestrado em Ciências Sociais em 2000, da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais)
 “O comércio da cultura: o caso dos povos amazônicos”, por Jean-Pierre Chaumeil. Boletim do Instituto Francês de Estudos Andinos, 2009, disponível em formato pdf na internet: http://www.ifeanet.org/publicaciones/boletines/38(1)/61.pdf

Mãe Ayahuasca

MADRE AYAHUASCA - 24kt gold water gilt/oil on wood 25"X20"(2008). Fonte: The Road and the Wilderness
Madre ayahuasca
llevame hacia el sol
de la savia de la tierra hazme beber
llevame contigo hacia el sol
del sol interior hacia arriba
hacia arriba subiré madre
úsame, háblame, enseñame
enseñame a ver
a ver mas allá
a ver al hombre dentro del hombre
a ver el sol dentro y fuera del hombre
enseñame a ver, madre
usa mi cuerpo, hazme brillar (bis)
con brillo de estrellas con calor de sol (bis)
con luz de luna y fuerza de tierra
con luz de luna y calor de sol, madre
Madre ayahuasca llevame hacia el sol. 


Visitem o blog Icaroterapia. Leiam também "Therapeutic Potential of Ayahuasca: how it works an overview of an extraordinary holistic medicine". Ícaros da Cultura Etnoterapêutica da Ayahuasca podem ser escutados no site Madre Ayahuasca