quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Pela causa Kaiowá


Aldeia Kaiowá, Tukuaryty, 1994 - Paranhos, MS
© João Roberto Ripper. Coleção Pirelli-MASP

DIREITOS INDÍGENAS E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
 DO MOVIMENTO INDÍGENA


Divulgamos abaixo novo comunicado do Aty Guassu. Este comunicado é muito importante porque ele informa com bastante clareza os direitos indígenas contemporâneos e falam dos desafios que estão enfrentando para garantir estes direitos. Proponho uma leitura carinhosa e uma ampla divulgação. É importante que todos conheçam os direitos indígenas e a legislação que os garante.

Prezados (as)
Esta nota é para divulgar.

NOTA DA ATY GUASU GUARANI-KAIOWÁ-MS

O objetivo desta nota do conselho da grande assembleia Guarani-Kaiowá Aty Guasu é destacar os direitos indígenas garantidos na Constituição Federal de 1988. A princípio a Constituição Federal de 1988 reconhece os povos indígenas integralmente como ser Humana e capaz, passando a possuir os direitos humanos. Até a Constituição de 1988 o Estado Brasileiro atribuía aos povos indígenas a condição de “relativamente (in)capazes”, ou seja, nós indígenas fomos há séculos juridicamente considerados como sub-humano, nós “índios”não teríamos a condição e capacidade Humana, não éramos tratados como pessoas humanas, por essa razão mesmo foi criada órgão indigenista tutor. Importam explicitar que a Constituição Federal de 1988, art. 231: reconhece os direitos à nossa organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Assim, a partir de 1988 a tutela indígena e incapacidade dos índios são juridicamente superadas, portanto nós indígenas passamos a ser compreendido como sujeito de direitos, humanas e cidadão primeiro brasileiro. Essa Lei Federal garante-nos os direitos de recuperar as terras que tradicionalmente ocupamos. Além disso, temos direitos de nós manifestarmos, propor e lutar pelas políticas públicas específicas de reparação, visto que fomos historicamente taxados de não humano, explorados, massacrados, expropriados e expulsos de nossos territórios antigos. Neste sentido amplo, o Estado-Nação Brasileiro possui imensa dívida com nós indígenas. Até o momento, apenas duas políticas públicas específicas (saúde indígena e educação escolar indígena) foram em parte implementadas para atender especificidades dos povos indígenas. Apesar da existência de nosso direito a recuperar as nossas terras antigas, porém entendemos que até hoje não há ainda uma política clara do Governo Federal para efetivar a demarcação definitiva das nossas terras tradicionais, isto é, em nossa visão não existe uma posição e ação segura do Estado-Nação e da Justiça para efetivar a devolução da parte dos nossos territórios tradicionais reivindicados. Exemplo: a identificação e demarcação de nossos territórios Guarani-Kaiowá iniciadas pela Fundação Nacional dos Índios (FUNAI) ao longo das décadas de 1990 e 2000 se encontram todas paralisadas nas Justiças.

Diante desse contexto histórico, gostaríamos de evidenciar que em geral, nós povos indígenas temos também direitos garantidos nos documentos internacionais importantes, tais como: a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1989), ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 143 de 25 de julho de 2002; a Declaração das Organizações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (ONU, 2007); e a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO ratificada pelo Decreto nº 485, de 19 de dezembro de 2006.

Estes documentos reconhecem a contribuição dos povos indígenas para a diversidade cultural, considerada “patrimônio comum da humanidade” (ONU, 2007; 2) e para a formação das sociedades nacionais e de suas identidades socioculturais, apresentando uma série de diretrizes para que os Estados Nacionais desenvolvam ações voltadas para a efetivação “dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando sua identidade social e cultural, costumes, tradições e suas instituições” (OIT, 1989: 23). A Convenção da Diversidade das Expressões Culturais, por sua vez, recomenda aos Estados adotarem medidas para proteger e promover a diversidade cultural considerando esta como estratégica para o desenvolvimento sustentável nacional e internacional.

Compreendemos que a Constituição do Brasil de 1988 e os marcos legais estabelecidos pelos Organismos Internacionais instauraram as bases para o desenvolvimento de políticas públicas específicas voltadas para a efetivação dos nossos direitos diferenciados como os povos indígenas primeiros brasileiros. Importante dizer que as nossas diferenças culturais constituem um dos fatores determinantes para a criação de programas e políticas governamentais particulares. Desse modo, as nossas histórias, culturas e direitos acabam por indicar a construção das políticas públicas específicas nas áreas de: educação, saúde, cultura, segurança/defesa dos territórios tradicionais entre outros.

Como já dito, até hoje, há duas políticas públicas criadas para atender as especificidades dos povos indígenas nos setores da saúde e da educação. Por meio da Portaria nº 254 de 31 de janeiro 2002 o Ministério da Saúde aprova a Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena que visa compatibilizar a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990) com a Constituição Federal. O principal objetivo desta política é garantir aos povos indígenas o acesso à atenção integral e diferenciada à saúde considerando a diversidade sociocultural destes povos, bem como a eficácia suas medicinas tradicionais e o direito às suas culturas. Para tanto, foi criado no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas que institui os Distritos Sanitários Especiais Indígenas como forma de organização de serviços em espaços etno-culturais delimitados (Ministério da Saúde, 2002; 13).

No caso da educação a Constituição prevê o direito dos povos indígenas a terem acesso à educação formal diferenciada configurada pelo ensino bilíngue – português e línguas indígenas – e pela utilização de processos próprios de aprendizagem. A Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, torna obrigatório à inclusão de conteúdos de história e cultura indígena no currículo oficial da rede de ensino nacional. Enquanto o Decreto nº 6.861, de 27 de maio de 2009, dispõe sobre a educação escolar indígena e a sua organização dos territórios etnoeducacionais, regulamentando o direito constitucionalmente garantido.
Enfim, de modo similar, pensamos que seria necessário se construir uma política do Estado para a devolução/demarcação definitiva das partes de nossas terras tradicionalmente ocupadas por nós Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul.

Artigo 26 1. Os povos indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que possuem e ocupam tradicionalmente ou que tenham de outra forma utilizado ou adquirido.2. Os povos indígenas têm o direito de possuir, utilizar, desenvolver e controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da propriedade tradicional ou de outra forma tradicional de ocupação ou de utilização, assim como aqueles que de outra forma tenham adquirido. 3. Os Estados assegurarão reconhecimento e proteção jurídicos a essas terras, territórios e recursos. Tal reconhecimento respeitará adequadamente os costumes, as tradições e os regimes de posse da terra dos povos indígenas a que se refiram.

Cientes de nossas histórias e direitos, como povos indígenas, nós lideranças da Aty Guasu Guarani-Kaiowá vamos lutar reiteradamente pela efetivação dos nossos direitos no Estado do Mato Grosso do Sul e Brasil.

Atenciosamente,
28 de fevereiro de 2012
Os membros do Conselho da Assembleia Geral Aty Guasu Guarani-Kaiowá-MS

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Etnoterapêutica da Aiauasca: Ética e Memória

 
O Retorno, arte digital representando o encontro do Mestre Irineu Serra com o pajê Pisango no Alto Rio Acre.

Todas as religiões são construções de identidades étnicas elaboradas por artífices humanos com base em experiências tanto sensoriais quanto parassensoriais (que independem dos sentidos proativamente): o que chamamos construtos culturais. A religiosidade é uma demanda espontânea do ser coletivo pela necessidade de uma regra comum e por isso os códigos de conduta religiosos foram as primeiras leis que a humanidade desenvolveu para seu alicerce, ainda antes de qualquer forma escrita, e, por isso os exercícios mnemônicos constantes nas recitações e litanias, a seleção de indivíduos hábeis ao aprendizado de memória, a necessidade da tradição oral para a conservação de segredos, e claro, também para a ocultação do sagrado que, de grosso modo, favorecia as benesses de classe pelo papel de “interlocutores privilegiados” com os poderes superiores da Natureza divinizada.

Na Grécia Antiga, o Aedo era o Poeta-Cantor, e sua arte era considerada um culto à Memória. Esses artistas e suas celebrações rodeando um centro de força edificado como plataforma de contato interdimensional... foram comuns a muitas culturas em toda parte do mundo, o que é demonstrativo não de uma unidade cultural mas de uma universalidade da formação das religiões a partir a necessidade de edificar uma identidade étnica para servir como meio de controle das coletividades e também como parâmetro de suas interrelações sociais.

Não foi por acaso que o Estado Imperial Romano se metamorfoseou em Igreja Católica Apostólica Romana: se as instituições políticas perecem, um sistema político consegue se perpetuar se estiver embutido ou atrelado a um sistema religioso, pois este, enquanto cultura, permanece no âmago dos indivíduos e suas famílias, e não apenas na esfera pública. Enquanto Igreja, um Império pode chegar até a intimidade das pessoas, o que um Império enquanto submissão armada não consegue jamais ocupar. O monoteísmo imperialista surgiu como conceito no mundo mediterrâneo através do povo hebreu, por isso uma seita periférica como a dos cristãos conseguiu ser absorvida pelos romanos interessados em desenvolver um império hegemônico mundial. O profeta torturado sob o selo dos césares foi elevado ao panteão supremo por inspiração do Imperador Constantino, que viu sua mãe Helena absorver a exótica crença de modo surpreendente, e renovou o Império Romano ao criar o Cristianismo como religião de Estado. Na verdade, foi Constantino quem fundou a Igreja Católica nos moldes que conhecemos hoje, e não o Apóstolo Pedro, icônico pescador de almas, o velho galileu feito mártir em Roma sobre as comunidades étnicas de interação hebréia na geografia do Império, política que surgiu da inspiração de um intelectual que transitava entre tais culturas, o cidadão romano Saulo de Tarso. São Pedro e São Paulo comemoram-se no mesmo dia em Roma e em todas as igrejas do mundo romano desde então. Roma pereceu, mas a noção de Império Cristão permaneceu no chamado Ocidente até Carlos Magno representar sua integração com um sistema de linhagens das famílias reais das monarquias européias, onde se elaborou uma estrutura feudal de posse do espaço físico em uma dimensão espiritual, ou seja, cultural, internalizada, resistente pois persistente ao modo de atavismo inconsciente ou inconscientizado.

A Bíblia diz que Salomão foi rei de muita sabedoria, e um dos dizeres a ele atribuídos menciona que não devemos confiar em nenhum homem, apenas em Deus. Se as religiões são construtos humanos, será que não podemos nelas confiar? Será que precisamos desconfiar de nossas religiões todas, que estão, enquanto referências culturais obrigatórias, incorporadas ao âmago de cada um ser humano? Precisamos, sim, não confiar nos homens e na obra dos homens, pois sua visão é demasiado estreita em relação à amplitude da visão de Deus. Passar pela porta estreita, como predica o Evangelho, não será então focar a visão em um objetivo? Excesso de foco nunca existe, o que acontece de existir são problemas de foco exclusivo ou visão multifocal: acredito que existam pessoas que necessitem de um tipo de aprendizado vivencial muito focado, e outras aprendam melhor por uma abordagem mais abrangente, mas é bem certo que é mais fácil trapacear, manipular ou deformar o aprendizado quando existe foco exclusivo, como na formação de tropas de elite, este o perigo dos fundamentalismos e fanatismos, vistam estes a face política ou a religiosa.

“Abre o olho, mané...” – em tupi-guarani, língua geral dos primeiros brasileiros, Mané é “pessoa”, enquanto no português do Brasil atual Mané é um manoelzinho, um estrangeiro tosco, sem percepção das diferenças daqui e de lá, que entende tudo ao pé da letra e não através das letras... A expressão popular de advertência ou alerta, mostra que aqui neste canto do mundo, onde muitas culturas em efervescência colidiram e continuam se misturando, esperto é quem percebe o seu redor e vê o jogo que avança  para melhor dominar a bola.

Mas porque seremos o Brasil um povo de visionários artistas que plasmaram tamanha identidade polidiversa, e que sente como necessidade o sonhar com uma cultura plural? A Jurema, no Nordeste brasileiro, como complexo cultural construtor de uma identidade étnica de resistência indígena, é o contraponto irmão da Aiauasca no Estado do Acre (no Peru se grafa Ayahuasca, mas qual o problema de se memorizar cinco vogais na ordem correta?), Aiauasca hoje já em realização de sua inclusão no Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC, junto ao Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, do Ministério da Cultura. Em ambos complexos culturais vemos uma manifestação ritual de fundamentação espiritualista (de comunicação com espíritos de pessoas, vegetais, animais e minerais), com musicalidades próprias que remontam a origens precolombianas.


Modus vivendi etnoterapêutico: nos primeiros tempos da Vila Céu do Mapiá, sede do então Centro Eclético da Fluente Luz Universal “Raimundo Irineu Serra”, no Estado do Amazonas, momento da debulhação do feijão produzido pela comunidade aiauasqueira liderada pelo Padrinho Sebastião Mota.

É curioso que, tendo sido o Catimbó de Jurema muito perseguido e menosprezado pelas sociedades nordestinas enquanto manifestação de uma religiosidade popular que teve de ficar oculta por destoar das convenções sociais e religiosas, ainda não houve suficiente mobilização nem da comunidade juremeira nem dos intelectuais da região para o reconhecimento dessa sua cultura de raiz, mas é interessante que, no Acre, tenha sido justamente por uma necessidade de legitimar essas manifestações religiosas populares que se tenham constituído os primeiros centros aiauasqueiros, os quais paulatinamente se coordenaram de modo a defender interesses comuns, e assim, baseando-se na atual legislação cultural, tenha se dado início ao processo de registro desse patrimônio da cultura popular. Segundo Antonio Alves, representante do Alto Santo na Câmara Temática da Ayahuasca em Rio Branco, esta iniciativa foi tomada no sentido de servir e colaborar com toda a sociedade brasileira, e é bem verdade que tais diretrizes estão previstas nos próprios fundamentos legais desses centros, o que a inclusão do tema da Aiauasca Indígena nesse INRC, enquanto demanda apresentada por jovens lideranças e pajés-cantores indígenas do Acre, deve também servir para ilustrar ao Povo da Jurema que o caminho do futuro é o entendimento do papel dessas bebidas rituais na etnoterapêutica peculiar a cada cultura. 
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O que Kariris-Xokós, em Alagoas, e o Povo Xakriabá, em Minas Gerais, encontraram na Jurema como instrumento de reconstrução de sua identidade étnica, é o mesmo que os Shipibo-Konibo, no Peru, e os Kuntanawa, no Brasil, estão fazendo com a Aiauasca: seu alicerce maior. E quando falarmos concretamente na Etnoterapêutica dessas plantas, estaremos começando a compreender as responsabilidades que todos os que desses saberes se querem adonar. “Há um tempo para cada coisa no mundo: um tempo para plantar, e outro para colher...” Um novo Cristianismo não-ideológico, que é mais uma ética endógena pela compreensão das energias que circulam no universo, está surgindo na floresta, pela interação de todos esses seres da Criação. 2014 promete! Vamos positivar nossa memória...!

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Above the red pills

Pontos de vista estritamente culturais: o planeta Terra não possui parte de cima ou parte de baixo, não tem cabeça nem pés – a representação cartográfica ocidental é que desenha o hemisfério norte na parte superior, enquanto a antiga tradição oriental ilustra o hemisfério sul na parte de cima de seus mapas. Em verdade, o pólo magnético positivo do planeta está na Antártida, e o negativo no Círculo Ártico. Nesta foto recente da NASA, que invertemos, imaginamos como desde o espaço poderia ser enxergada a Península do Yucatán, e suas águas verdes, como um ponto estratégico na espinha dorsal de dois continentes: a Amazônia e os Andes assim nos aparecem ao fundo, entre nuvens. Mudando o ponto de referência, a visão muda e a compreensão da visão se amplia.  
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A grande matrix que te sujeita é a cultura que formatou teu modo de conhecimento. A grande matrix que nos tem escravos é a matriz cultural que nos enquadra. Todo o construto das diferentes culturas humanas procura servi-las como alicerce: propagam-se definidamente em direção a um termo infinitivo, que por guardar semelhança com seu próprio princípio pretende ser compreendido ou apreendido como uma conexão com a Criação Divinal. Isso explica porque religião e teatro surgem ao mesmo tempo, assim como antes religiosidade e música haviam despertado juntas no coração do bicho-homem: manifestaram-se como celebrações da identidade cultural de uma coletividade espelhada em si e em contraponto em relação às demais identidades por ela reconhecíveis como membros de uma coletividade maior ou não. O horizonte mais amplo de uma humanidade planetária ainda está sendo esclarecido e compreendido pelas culturas do planeta, e sua ignorância está diretamente ligada às manipulações do sistema econômico mundial sobre a vida cotidiana das pessoas e que a influenciam com programações mentais de consumismo de massa, descartabilidade das relações humanas e paradogmas como  “Tempo é Dinheiro” e outros memes.
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O que sabe tocar o espírito do homem é a Cultura, e neste intuito é que as culturas ancestrais, enquanto as primeiras construções de identidades étnicas, foram sempre forjadas pelos pajés, xamãs, sacerdotes, os poetas e professores de cada povo, pois eruditos sempre se instruíram entre estes poucos agraciados pelas conjunturas sociais de trabalho, que podiam encontrar tempo de se dedicar à interiorização necessária para a concepção da arte identitária e o exercício da filosofia. Vir a interpretar todos tais construtos culturais (cuja permanência no tempo reforçou um aspecto mágico de imortalidade) como propostas salvíficas ou escatológicas, talvez seja caso de mera miopia etnocêntrica, mas é bem verdade que em muitos casos se apresenta uma ideia de renovação comparável à redenção do ideário cristão. O pináculo da Torre de Babel pode, entretanto, sinalizar que o que os construtos culturais pretendem é “tocar a fonte da Criação”, e como isto é utopia, toda cultura muito fechada em si como uma torre  tenderá a colapsar em sua estrutura e fragmentar-se em culturas que perdem então a capacidade de dialogar umas com as outras. O refazer do processo construtivo só se torna então possível com a mudança da estrutura original para outro diagrama de composição e outras vias de ação.
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"O Astronauta", geoglifo do Vale de Nazca, no Peru
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Os complexos sistemas culturais ao longo de gerações sempre enfrentam transformações e contingências adversas pelas quais têm de se adaptar, em muitos casos se mesclar, pois ou buscam sobreviver ou são extintos. Impressionante é que seres humanos pereçam ao longo de todas as suas vidas por injunção de choques culturais promovidos pela interação ou competição econômica entre nações, e que um número ainda maior deles termine vitimado pelo próprio sistema cultural na conjunção tempo/espaço em que nasceu e que hostiliza, reprime ou impede uma livre expressão de suas personalidades ou habilidades. 
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A revolução tecnológica hodierna vem possibilitando a formação de uma Cultura de Convergência, teorizada por Henry Jenkins em 2007. Mas o vislumbre de uma Cultura Humana global, multidimensional e multidiversa, só será possível quando a interface dessas matrizes culturais se reconverter em uma outra harmônica espacial. Será este o nosso grande dever de casa? Sabemos que a Terra, mãe de todos, mãe de nós e mãe dos outros, agradecerá a cada um que abrir as portas da consciência a esta nova Sincronia.

"O Sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Momentos de espr'ança e da vontade,
Buscar um linha fina do Horizonte -
A árvore, a praia, a flor, a ave, a ponte
- Os beijos merecidos da verdade"

("Horizonte", poema de Fernando Pessoa )

Para participar do projeto de criação de uma Aldeia Multi-Étnica modelar no Estado do Acre, Amazônia, Brasil, entrem em contato: ecognose@gmail.com

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Um futuro para os jovens estudantes indígenas do Acre

A notícia boa que nos chega é que foi aprovado no vestibular indígena para a carreira de Medicina, na Universidade Federal de São Carlos, no interior de São Paulo, o jovem hunikuin Ornaldo Baltazar Sena, Ibã. Ele é filho do agente de saúde Francisco Senhorzinho Sereno Sena, pajé do Jordão, e sobrinho do grande liderança Francisco Sabino, da Aldeia Posto de Vigilância Novo Segredo, nas cabeceiras do Jordão.

O mérito do jovem txai se deve também ao suporte que uma família "nauá" (como os hunikuin chamam os vizinhos brancos) ofereceu a ele, proporcionando um ensino médio de qualidade na capital do estado. Com certeza, para o Sr. Carlos Freire e seus familiares, que o ampararam aqui em Rio Branco, esta é uma alegria também por contribuir com a sociedade acreana em geral e em especial com a sociedade indígena, pois este primeiro índio acreano quando se formar médico servirá certamente de estímulo à formação de muitos outros jovens das etnias aqui representadas no estado.

Neste ponto, será importante re-pensar a educação indígena no Acre, pois a identificação de potenciais humanos a partir de testes vocacionais ainda não é praticada, ainda não há uniformização entre o material didático das escolas estaduais indígenas e o proporcionado por muitas escolas indígenas municipais existentes no estado, ainda não existe possibilidade de conclusão do ensino fundamental na maioria das escolas indígenas em especial quanto à sétima e oitava séries, ainda precisa ser criado material didático específico em nível de ensino médio sobre geografia, história e ciências naturais, e isto quando existir um ensino médio diferenciado a ser oferecido aos estudantes indígenas que lhes possibilite ingressar no ensino superior com capacidade de graduar-se. É a isto que as propostas de autonomia indígena direcionam: o aproveitamento dos potenciais humanos dentro das comunidades de modo a conduzir seus moradores ao progresso autossustentável. 

Poderia falar aqui sobre a dívida da população acreana com o seu contingente indígena, massacrado no processo de abertura das frentes colonizadoras brasileiras e depois no contexto da administração federal do território, para defender cotas para estudantes indígenas na UFAC, mas não cabe a mim tal alerta. Falando positivamente, em termos de redes sociais, é importante lembrar ao governo estadual que, uma das propagandas mais inteligentes que podemos fazer do Acre divulgando o seu turismo e as suas vantagens é através da valorização do nosso patrimônio cultural, do nosso diferencial cultural.
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Uma peça de artesanato têxtil indígena que se venda em Milão ou Camberra, é uma propaganda muito eficiente junto a pessoas de excelente nível social e cultural, se constar nesse produto a marca de nosso estado. Um pajé ou tuxaua que se apresente em Toronto ou em Cusco, manifestando a produção cultural de seu povo e sua cosmologia ancestral, é um atrativo e fomenta atividades empreendedoras ligadas ao turismo. Um estudante indígena do Acre que se destaque, como Ornaldo Ibã o está fazendo, dignifica todo o sistema de educação indígena diferenciada no estado. Precisam ser valorizados, pois estes são nossos embaixadores da selva, que se destacam e obtém espaço na mídia, como Haru Kuntanawa e Shaneihu Yawanawa, artífices da construção da florestania, porque, perdoe esse meu entender se equivocado, isso de florestania não é mesmo uma ideologia senão um estado de espírito, e tal estado de espírito é a realização da Aliança dos Povos da Floresta no seio das famílias que em defesa do patrimônio da floresta se pacificaram. É algo que já existia antes de ser nomeado, e entretanto é ainda um processo em construção pelos próprios moradores do Acre.

Moradores do Acre, e não apenas eleitores, eu falei: porque os indígenas no Acre podem representar uma força eleitoral pouco expressiva, a não ser em municípios muito pequenos como Santa Rosa do Purus ou Porto Walter, e não terem uma eficaz articulação política e suporte financeiro a nível estadual para assegurar o devido acesso de todas as etnias às decisões participativas, mas possuem importância fundamental no processo de construção da moderna sociedade acreana, sendo eles que estabelecem, através de seu empenho em valorizar suas culturas tradicionais e formar novas gerações de indígenas acreanos com sua dignidade de vida assegurada, um enorme potencial de utilização das redes sociais internacionais para benefício não apenas das comunidades indígenas mas do estado como um todo, é isso o que gostaríamos de ver incluído na visão dos gestores da nossa administração pública, para um futuro melhor para todos. "Nosso saber é nossa marca": este lema, do Instituto Indígena Brasileiro de Propriedade Intelectual, criado a partir da iniciativa dos pajés de diferentes etnias brasileiras, cabe muito bem para ilustrar essa nossa vontade de dar valor ao que é da nossa terra.
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Contatos com o estudante indígena: ornaldosenna@gmail.com