sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Viva nossa Pachamamita!


CONTROLE MÚSICA QUECHUA 

EFEITO VENTO 

REPORTER Estamos em Puno, junto ao imenso e azul lago Titicaca. Em agosto as comunidades indígenas, quechuas e aymaras, celebram e agradecem à Mãe Terra, a Pachamama, deusa da fertilidade. 

CONTROLE SOBE MÚSICA QUECHUA 

REPORTER Conversamos con Gumersinda Vargas, locutora de uma jovem e dinâmica emissora punenha que leva esse mesmo nome, Radio Pachamama. Diga-me, Gumersinda, para vocês, indígenas dos Andes, que significado tem a Pachamama? 

GUMERSINDA Bom, a Pachamama para nós é uma coisa muito grande, muito santa. É algo muito sagrado para as mulheres e os homens do mundo andino. No mês de agosto pensamos que a Pachamama tem de fome. Dizemos assim porque no mês de agosto recebe com maior satisfação todas as penas, as alegris que temos no povo, em nossa familia, em nossa comunidade. Lhe recordamos à Pachamama com bastante veneração, com bastante carinho, porque da Pachamama vivemos, aqui nascemos. Desta Pachamama comemos. 

REPORTER Vocês falam de fazer o "pago" à terra, à Pachamama. Como é isso? 

GUMERSINDA Para o pago à Pachamama temos que coordenar com a família ou com a comunidade. Temos que buscar a um "pakko". Esse "pakko" é o que celebra toda a cerimônia da Pachamama… Nos dão uma lista para fazer a compra para uma missa doce. 

REPORTER Uma missa doce? 

GUMERSINDA A missa doce está cheia de muitas coisas. Por exemplo, se queremos que nossa família vá bem, não nos falte comida, não nos falte uma casa, não nos falte o amor dentro da família, então há uma casinha de doce, há um casal que nunca vai romper o casamento. Logo nos pedem o incenso, as velas de cor. Nos pedem carvão, nos pedem o álcool para fazer a "chama", nos pedem a mistura, os confeitos… principalmente a coca. 

REPORTER Coca? Folhas de coca? 

GUMERSINDA São folhas grandes de coca que temos que comprar especialmente. E com o vinho e a água doce dos confeites temos que fazer nossos desejos. Pedir-lhe com muito fervor, com muito carinho, com muito amor, dizer-lhe: "Pachamama bendita, que em minha família não haja brigas, que não nos falte o que comer." Vamos pedindo-lhe à Pachamama a través destas folhinhas, mas inteiras, e as mais bonitas e as mais verdes. 

REPORTER As folhas de coca são sagradas para vocês?  

GUMERSINDA São sagradas, sagradíssimas.Porque nos servem para o trabalho, para aliviar-nos. Dizem que a coca é má. Mas não, a coca não. Para nós a coca é uma coia que nos acompanha em nossa vida. Nos acompanha no trabalho, nos acompanha de dia e de noite. Em nossas tristezas e em nossas alegrias, nunca nos falta a coca. A coca sempre está conosco. 

REPORTER Voltamos ao pago à Pachamama. Como o fazem? 

GUMERSINDA Temos que jogar vinho no lugar onde vamos fazer o pago à Pachamama… E tudinho ao redor fazemos o cerco e acendemos com álcool, com fogo acendemos, e aí é onde nos recebe todas estas intenções a Pachamama. Em nossa família sempre preparamos depois da Pachamama um comidinha especial, saborosa. É como uma festa. Nos abraçamos com gosto toda a família, toda a comunidada, e lhe dizemos: "Obrigado, Pachamama bendita". E comemos, muitas vezes dançamos. Esse é nosso costume. E esse é o costume que nos deixaram nossos antepassados. 

REPORTER Gumersinda, por que não nos faz uma oração, em quechua, à Pachamama para que neste mês de agosto bendiga a todas as mulheres e homens que cremos nela, também a Radialistas? 

GUMERSINDA Vamos fazer nossa oração à Pachamama. 
ORAÇÃO EM QUECHUA 
OBRIGADO, Pachamama! 


Para escutar o programa, acessem o site colombiano "Radialistas Apasionadas y Apasionados

domingo, 26 de agosto de 2012

O Espírito de Huáscar Inka


Sky Spirits, pintura visionária de Pablo Amaringo, do Imaginário Amazônico da Ayahuasca.

SEQUÊNCIA 9 _ O Sumo-Sacerdote e Manco Inka
...
A visita dos três soldados aconteceu em março de 1533, decorridos quatro meses da captura de Atahuallpa. Cerca de um mês mais tarde, portanto em abril do mesmo ano, temos em Cusco uma reunião entre o Sumo-Sacerdote e Manco Cápaq Inka Yupanki, irmão legítimo de Waskar que se fará depois conhecido como Manco Inka. O cenário é o Qorikancha arrasado pelo grande saque realizado pela retirada do resgate de Atahuallpa, e o horário as primeiras horas do dia, quando os raios de sol parecem mais dourados por entre a tênue neblina.
Manco Inka chegou e contempla desolado o templo vazio. O Sumo-Sacerdote entra acompanhado de dois sacerdotes que prudentemente se conservam à distância do encontro dos dois.
MANCO _ Meu tio, o Senhor mandou me chamar...
SUMO-SACERDOTE _ Manco Cápaq Inka Yupanki, é chegada a hora de conversarmos sobre o destino deste Império...
Se saúdam e o Sumo-Sacerdote conduz o príncipe, pouco mais velho que Waskar, a um aposento onde poderão se sentar. Enquanto caminham até lá conversam:
MANCO _ O Senhor deve ter o coração partido de contemplar essas paredes sem o esplendor de antes... Como o Supremo Criador aceitará toda essa desolação?
SUMO-SACERDOTE _ Em verdade já esperávamos que isso acontecesse... Lembra-te que teu irmão Waskar Inka ordenou que retirássemos daqui o sagrado óvulo que pertencia ao nosso Pai Manco Cápaq, e muitos o julgaram como louco? Agora sabes o porquê...
MANCO _ Esse maldito Atahuallpa! Como poderia querer ser Inka se desprezava nossa própria religião, que é o sangue e a vida do Império?
Entram no aposento onde se sentarão, e lá a velha Sacerdotisa que foi vista na seqüência anterior os aguarda com uma provisão de alimentos da região, para a primeira refeição do dia. Saúda-os, mostrando os alimentos (tubérculos, espigas cozidas de milho branco, pedaços de queijo, mel) e logo depois se retira para que conversem a sós. O Sumo-Sacerdote oferece um lugar para que Manco tome assento, e louvando a beleza dos alimentos toma seu lugar. Enquanto vão conversando, comem com as mãos e mastigam deleitosamente como se aproveitassem o sabor dos alimentos.
SUMO-SACERDOTE _ Pedi que viesses hoje ter sua primeira refeição comigo, príncipe, para que começando assim o dia juntos começássemos também a tratar de nosso futuro à frente do Império...
MANCO _ Nosso futuro?
SUMO-SACERDOTE _ O longo tempo em que Atahuallpa permanece prisioneiro já extenuou os guerreiros que haviam lutado do seu lado contra a nossa gente. Estão decepcionados porque percebem que foram ao fim de tudo derrotados, e agora ainda mais, que sabem que mesmo havendo recebido o ouro e prata com que Atahuallpa pretendia comprar sua liberdade, os homens brancos não o soltaram, antes disseram que ele será julgado como criminoso de guerra. Sabem que esses homens brancos são piores que diabos, que têm armas que cospem fogo e grandes animais sobre os quais caminham sem cansar os pés... Na verdade, sabem que Atahuallpa terminará ao final de tudo sendo morto, e nunca chegará a Cusco com sua falsa maskaypasha para proclamar-se Inka de nossa gente... Calicuchima já não dorme de tanta angústia, e Quisquiz parece ter se esquecido do que veio fazer em Cusco.
MANCO _ Está certo o castigo de Atahuallpa, e afinal foi para isso que meu irmão Tubalipa foi ter com os homens brancos e ajudou-os a chegarem até Cajamarca. Mas o grande Inka Waskar, onde ele está agora? É verdade que Atahuallpa fez com que o matassem?
SUMO-SACERDOTE (solene) _ Waskar vive!
MANCO (o rosto subitamente iluminado) _ Vive!!! Então teremos como expulsar os forasteiros...
SUMO-SACERDOTE _ Não!... Waskar conseguiu para si escapar das mãos de Atahuallpa, mas já não governa, não tem mais o destino de ser Inka e comandar o nosso povo... Entenda, Manco _ era essa a profecia que meu irmão, o grande Inka Wayna Cápaq, esperava que se cumprisse em seu filho. Sabíamos que seriam em número de doze os governantes desse Império, e foram _ um, Manco Cápaq; dois, seu filho Sinchi Rocca; três, o neto de Sinchi Rocca, que foi Lloque Yupanki; quatro, o grande Mayta Cápaq... Depois Cápaq Yupanki usurpou o poder, foi o quinto Inka; seu filho Inka Rocca foi o sexto; Yawar Tupaq, a quem chamavam Inka Yupanki, foi o sétimo, mas morreu pelas mãos da gente do Contisuyu, motivo pelo qual fizeram de seu tio Wiraqocha Inka o oitavo Imperador... Veio Pachakuteq Inka e reformou o Império, pondo fim a essa dinastia amaldiçoada, foi o maior Imperador que esta terra já possuiu e o que teve maior poder. Tupaq Yupanki, seu filho, foi o décimo Inka, e Wayna Cápaq, meu irmão, teve a dita de saber que em seu tempo começariam a chegar à esta terra os primeiros homens brancos, e que o filho que escolhesse para sucede-lo devia estar preparado para o pior...
MANCO _ Ninancuyuchi era o herdeiro escolhido por meu pai!
SUMO-SACERDOTE _ Sim, mas porque ele sabia que existia entre nós gente que pretendia usurpar o poder, como fizera Cápaq Yupanki contra seu irmão Tarko Wamán que era o legítimo herdeiro... Por isso disse a todos que Ninancuyuchi seria Inka, pois assim, quando o mataram, descobriu quem era a víbora que havia entre nós!
MANCO _ Atahuallpa...
SUMO-SACERDOTE _ Por isso Atahuallpa foi levado para bem longe daqui, e por isso Waskar seu irmão deu-lhe poder para que ele ficasse em Quito...
MANCO _ Agora eu compreendo.
SUMO-SACERDOTE _ Lembra quando a guerra começou? Waskar Inka mandou dizer a Atahuallpa que viesse a Cusco dar conta de seu trabalho, lembra-se disso? Sabíamos que Atahuallpa não viria, com medo de perder seu comando, e começaria a lutar contra nós...
MANCO _ Sim, me lembro.
SUMO-SACERDOTE _ Isso aconteceu quando chegaram em Cusco os primeiros homens brancos _ Don Cesar, Hernán, Ramón e Javier... Foi então que Waskar teve a confirmação de que era tempo da profecia se cumprir, e decidiu chamar Atahuallpa aqui para que o conflito tivesse início e assim os invasores que chegassem pelo mar teriam motivo de ir primeiro contra Atahuallpa, e não contra nós...
MANCO (perplexo) _ Agora compreendo o que meu irmão quis fazer!
SUMO-SACERDOTE (parecendo mais sombrio) _ A única morte digna para um Inka é aquela em que ele termina seus dias por vontade do próprio Criador, lutando pela sua liberdade... Lembra-te sempre disto, Manco: teu dia também chegará.
MANCO _ O que o Senhor quer dizer? Que eu serei Inka?
SUMO-SACERDOTE (tentando sorrir) _ Já tens um nome talhado para essa tarefa: Manco Cápaq Inka Yupanki... Na verdade, temos de fazer crer a toda a gente que não esperamos mais a volta de Waskar, que para nós o temos por morto, e que portanto o conselho reunido dos clãs escolherá o nome de um dos príncipes para suceder a Waskar, já que Atahuallpa não pode pretender o poder, não tem sangue de filho do Sol, não merece ser chamado de grande Inka entre nós...
MANCO _ O Senhor me deixa sem fala...
SUMO-SACERDOTE _ É importante que os homens brancos já não procurem por Waskar. É mais importante ainda que os homens de Atahuallpa constatem que nós não acreditamos que ele possa estar vivo... Faremos a reunião do conselho, e por teu valor e nobreza é certo que todos concordarão em fazer de ti nosso rei, com o nome de Manco Inka.
MANCO (confuso) _ Bem sabeis que não estou preparado para tal, e sequer tenho irmã com quem me casar para ter uma descendência legítima...
SUMO-SACERDOTE _ Manco Inka... Governarás, mas não terás verdadeiro governo: não vês o estado em que deixaram esse Templo sagrado aqueles homens? É uma gente cruel a que vem dominar nosso povo, é uma gente que quererá de nós tudo o que temos, e que começará pondo fim à nossa religião, aos nossos templos, aos nossos lugares de celebração... Para eles, somos nós os diabos... Eles trarão outro modo de celebrar o Supremo Criador, a imagem da dor e do martírio, e nós teremos de aceitar. Até o dia em que nossa terra possa voltar a dar frutos... Mas até lá, todos nós, desse tempo, já estaremos mortos, não veremos esse dia em que o povo das montanhas será liberto da opressão dos homens brancos...
MANCO _ Se é assim, é difícil que eu consiga receber o nome de Manco Inka. Prefiro ir para a selva, e encontrar meu irmão Waskar...
SUMO-SACERDOTE _ Não o farás! Se aproxima a grande festa do Inti Raymi, e talvez seja a última oportunidade que teremos de comemorá-la conforme a tradição... Nessa festa serás tu quem se apresentará como comandante de nossa gente, pois é este o teu destino, ser lembrado para sempre como Manco Inka. E tu ainda, em nome de nossa família, dos filhos do Sol, receberás em Cusco o chefe dos homens brancos que virá para nos governar... Fará isto para que a gente de Atahuallpa se dê conta de que perderam, de que foram derrotados, de que o poder de Waskar Inka jamais passou a Atahuallpa, que o poder de Waskar Inka passou a ti, seu verdadeiro irmão, seu verdadeiro amigo...
MANCO _ Não os poderei obedecer, meu tio, e eles hão de querer me matar...
SUMO-SACERDOTE _ O dia em que perceberes isso, junta tua gente, sai da cidade, vai à selva _ com certeza encontrarás um refúgio, mas nunca tão longe que a mão dos inimigos um dia não te alcance. Mas morrerás em liberdade, pelas mãos do Criador, isso eu te posso garantir...
MANCO _ E nunca mais verei meu irmão Waskar?
SUMO-SACERDOTE (erguendo-se) _ Estarás protegendo-o, tranqüiliza teu coração com esta certeza: tudo o que farás de hoje em diante será para defender a vida e a paz de teu irmão. Guarda este segredo, do que conversamos entre nós, e te sentirás feliz no momento de tua morte.
MANCO(levantando-se) _ Se é assim, eu serei Inka!
O Sumo-Sacerdote abraça o príncipe Manco Cápaq, que irrompe em pranto.
Plano de conjunto, música de fundo, termina a sequência.
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Trecho do Roteiro Cinematográfico "WASKAR E O VINHO MÁGICO", resultado das pesquisas sobre o Rei Huascar e porque Huascar Inka não possui o devido destaque na historiografia peruana. Na verdade Atahuallpa nunca entrou em Cusco como Imperador de fato, nem foi legitimado pelos sacerdotes principais do Tahuantinsuyu. A imagem de Atahuallpa prisioneiro foi usada pelos espanhóis como um eficaz golpe de marketing político em pleno século 16 a fim de apresentá-lo como rei avassalado, ícone da derrota espiritual do povo andino, mentira esta que surgiu para justificar um inequívoco fato histórico: nunca as tropas de Pizarro puderam chegar ao verdadeiro Inka.
Autoria de Eduardo Bayer Neto, que pretende transformá-lo em filme de animação numa produção Brasil-Peru. Direitos Autorais reservados na BN. Outras informações sobre minha pesquisa, consultem os links: 

07 Mai 2007
Edmundo Guillén Guillén, historiador peruano nascido em Lucanas, Ayacucho, em 1921, era doutor em História, doutor em Educação e advogado, catedrático da Universidad Nacional de Ica, sendo presidente da Academia ...
20 Jun 2007
Como a palavra "inka" é substantivo em quechua para dizer "monarca", relatos sobre incas anteriores referem-se obviamente a governos monárquicos havidos naquela região. Entretanto, não podemos efetuar uma mera ...
17 Jul 2007
Fonte: Lobo do Cerrado. Q´eros realizando pagos rituais. Em meu livro "O Verdadeiro Inka" (1999), assim relatei a conexão entre a permanência do mito de Inkari e a imanência do sistema religioso andino em continuidade: ...
14 Set 2008
A arte de traçar kenê pertence tradicionalmente às mulheres, quem, segundo a cosmologia aprenderam a fazer desenhos copiando-os do corpo de uma mulher Inka, proveniente do eterno mundo de fogo do sol que...
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sábado, 18 de agosto de 2012

Os Desterrados


Há coisas que duram para sempre. Não os livros. Entre os humanos a magia da letra escrita, cuja expressão em som tem o seguro dom de comunicar a voz de quem inexiste ou já deixou o mundo dos vivos àqueles que de outro tempo/espaço desfrutam, foi um primeiro segredo, os primeiros códigos de registro. A busca pela permanência vem do homem preocupado em marcar presença em uma paisagem determinada correspondente à grande parte de sua identidade básica: as raízes da cultura são entrelaces de sonhos compartilhados sob um céu em comum, dentro de um horizonte-limite estabelecido por regras identitárias. Os livros sagrados são totens e tabus, inscrevem-se no imperecedouro, calhau do rio do tempo que recolhe o conjunto daquilo que chamamos maravilhas das civilizações, maravalhas que são o refugo das esperanças mais indeléveis, reciclagem das entranhas planetárias expostas por seus filhos humanos sedentos de sabedorias, e talvez hajam pérolas trituradas por alquimistas das palavras na pretensão de engendrar outra nova esfera, quando na verdade um grão de areia (e a natureza da ostra) seja tudo o que é preciso... Mas livros não escapam a consumição das eras, despedem-se muitas vezes insepultos, desfazendo-se em suas próprias carnes, virando pó como o homem que dele se alimentava e nutria. O que permanece é só o que o homem guarda consigo, gravado em sua alma, e reformula de acordo com o que encontra ao seu redor no momento de sua vida, que na fruição dos milênios todos não passe talvez de uma vertiginosa fração quântica. Um a um, passa a corrente.
As culturas humanas têm o dom de dar suporte a experiências coletivas de mundo, servindo como plataforma e portanto impulsionando a liberdade de seus indivíduos. Ao mesmo tempo essas mesmas culturas também servem quase sempre para limitar, constranger, coibir, cercear, esvaziar de conteúdo próprio, a tudo aquilo ou a todo aquele que não se enquadre em seu sistema ordinário, seja oriundo dela própria ou nela insertado ou contrastado posteriormente. Os limites do Eu e do Tu, do Eu e do Outro, os instrumentos culturais de Identidade e Alteridade, são sistemas que balizam a vida em sociedade, e embora pretendam justificar-se, por noções religiosas ou hierárquicas, como “ordenações celestiais”, são seguramente meros “memes” culturais engendrados por seres pensantes chamados Homo sapiens.
As culturas se adaptam, ou morrem. O excesso de especialização, o nicho ecológico restrito, a inflexibilidade em relação às interações com outros seres, são etapas que conduzem à extinção de uma espécie viva na natureza, e com as culturas humanas não acontece diferente. Faz-se necessário avaliar a capacidade de autoadaptação para arriscar transformações, o que é o mesmo que dizer que faz-se necessário consciência. Uma consciência holística do processo referente, isto seria um foco estabelecido para uma progressão que levasse o ser (ou a cultura) a um novo estágio (de ser, ou de cultura) onde o diagrama ou espectro de ações fosse reconfigurado. Esta integridade muitas culturas indígenas da Amazônia e de outras regiões da América mantém, e por isso não podemos considerar que se dirijam à extinção, pois praticam um exercício adaptativo já há muito tempo, observando os ritmos maiores da natureza e integrando-se a eles ao longo de sua floresta-jornada, sempre pronta a reconfigurar-se. São especializadas em um corpus cultural específico sim, mas, sendo grandemente permeáveis entre si, as culturas ameríndias aprenderam o jogo da sobrevivência coletiva. Resta saber se o ritmo acelerado do tempo do trabalho tecnologizado lhes concederá sustentabilidade para tamanha façanha.