domingo, 20 de fevereiro de 2011

A Invenção da Ayahuasca

Haru Kuntanawa, jovem liderança indígena do Acre, é um dos embaixadores dos povos indígenas pela Paz Mundial na ONU, fundador do Instituto Guardiões da Floresta e etnoterapeuta (foto de Fabíola Ortiz, vejam seu blog)

A INVENÇÃO DA AYAHUASCA
por Eduardo Bayer Neto -  engenheiro florestal, funcionário do Departamento de Diversidade Socioambiental e Cultural - Fundação de Cultura Elias Mansour, Acre.

Quando em 2003 a UNESCO adotou a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, se valorizou o processo de institucionalização (invenção) da Cultura a partir dos interessados, o que representou uma pequena revolução conceitual, segundo Jean-Pierre Chaumeil, porque as visões anteriores sobre patrimônio privilegiavam sobretudo os aspectos materiais das coisas – no novo conceito, as tradições e expressões orais, danças e temas musicais, e os rituais e práticas sociais puderam ser incluídos na categoria de Patrimônio Cultural Imaterial.

Aqui no Acre comemora-se neste 2011 os vinte anos da Primeira Conferência Internacional da Ayahuasca, realizada na UFAC sob a batuta de Clodomir Monteiro. Se naquele tempo ainda se esboçava uma tentativa de estabelecimento de relações inter-institucionais entre as diversas agremiações religiosas da Ayahuasca, hoje esta articulação política entre elas em defesa de interesses comuns, especialmente quanto a regulamentação nacional do uso da bebida, é claramente imprescindível. Em busca do reconhecimento do valor cultural da Ayahuasca, assim como na vizinha nação peruana, no Acre esta foi declarada Patrimônio Cultural e semelhante encaminhamento feito ao Ministério da Cultura. A respeito, observe-se que Patrimônio Cultural Imaterial se define como:

“as práticas, representações, expressões, conhecimentos, assim como os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais associados, que as comunidades, os grupos e eventualmente os indivíduos reconhecem como parte de seu patrimônio cultural. Transmitido de geração em geração, este patrimônio cultural imaterial é recriado de maneira permanente pelas comunidades e grupos em função de seu meio, de sua interação com o entorno e de sua história. Lhes outorga um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo assim a promover o respeito da diversidade cultural e da criatividade humana”.

Em relação ao registro da Ayahuasca como patrimônio imaterial da nação brasileira, entendo como o mais adequado explicitar-se que a “Etnoterapêutica da Ayahuasca” é esse Patrimônio Cultural Imaterial. Por que utilizar esta terminologia e não meramente “Cultura da Ayahuasca”? Porque a Ayahuasca não pode ser entendida apenas como “cultura religiosa”: ela é, mais intrinsecamente, uma etnoterapêutica, uma práxis de etnoterapia. Essa foi sua função originária no uso ancestral indígena: organizar a etnia e mante-la. A Ayahuasca foi instrumento de construção e manutenção de identidade étnica entre muitas populações ameríndias. Seu cunho etnoterapêutico antecede ao uso religioso, que surgiu no Acre a partir da década de 1930 com a adaptação dessa etnoterapêutica tradicional ao seu uso por comunidades cristãs. Parece que os cientistas mais bem intencionados acabaram obliterando suas visões com tentativas de descrição do fenômeno religioso, sua história e trajetória, e deixaram em segundo plano o seu cunho etnoterapêutico quando de sua arregimentação em defesa da liberdade do uso da Ayahuasca.

Privilegiado o argumento da liberdade religiosa em detrimento do argumento da proteção da diversidade cultural, o pessoal se viu em dificuldades para obter uma conciliação ou termo conciliatório por parte das entidades usuárias da Ayahuasca no Brasil, quando do encerramento das reuniões do Grupo Multidisciplinar de Trabalho promovidas pelo Conselho Nacional Anti-Drogas, CONAD, órgão do Ministério da Justiça encarregado de enquadrar o funcionamento desses grupos consumidores da bebida. As lideranças indígenas do Acre, segundo os organizadores do GMT, não foram convidadas a tais discussões por instrução de indigenistas ligados ao governo estadual, que aparentemente consideraram que, como o uso da bebida nas aldeias ou por parte dos indígenas não possui concreta possibilidade de criminalização, melhor seria se eximir das discussões do chamado “pessoal das igrejas”.

Uma entrevista do Jornal Varadouro em 1981 com o Conselheiro José das Neves, um dos fundadores do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal, diz assim:

Varadouro: O Daime vem da mata e a mata está acabando por aqui, como vai ser?

José das Neves: Se acabar com a mata, com a floresta, pode acabar com a humanidade. Pode acabar com todo ser vivente, porque nos vivemos pela floresta e a floresta por nós. Se terminar com a floresta, então pode terminar com a humanidade que não vale mais nada. Sabe porque? - A floresta nos dá vida e a vida sopra de lá e cobre o mundo.

Varadouro: E os índios?

José das Neves: Eu creio que ele seja um brasileiro superior a nós. Eles vêm do solo e nós viemos arranjados de outros lugares, porque quando foi descoberto o Brasil eles já estavam aqui, já falavam com a natureza.

Fez notória falta a participação do pensamento indígena sobre algo tão relevante em sua cultura tradicional, gerando-se uma resolução “capenga” do CONAD, que por exemplo autorizou como legítima apenas a ayahuasca feita com dois ingredientes vegetais, o que seria motivo de readequação extrema por parte de um dos grandes centros produtores, e, por outra, indica ignorarem que a ayahuasca indígena pode possuir outras combinações. Quanto às recentes determinações do IMAC, Instituto de Meio-Ambiente do Acre, que regulamenta o volume anual de matéria-prima da ayahuasca a circular no estado por parte de cada instituição produtora/consumidora, pode-se dizer que tais medidas a nível local decorrem ainda da inconsistência da última resolução do CONAD em sistematizar o controle dessa atividade econômica, que possui implicações ambientais claras e afinal compõe as principais atividades de gestão das entidades usuárias, falta de legislação específica que poderia estar favorecendo a prática de um mercado negro da bebida, no Brasil assim como exterior.

Talvez se houvesse sido colocada em primeiro plano a Etnoterapêutica da Ayahuasca, e não as culturas religiosas dela advindas, a discussão legal já estaria em outro patamar, em instâncias da UNESCO e da Organização Mundial da Saúde. No século 21 já possuímos mecanismos internacionais de proteção da diversidade cultural, verbas para a pesquisa científica dessa etnoterapêutica, redes sociais nos meios acadêmicos, para se pleitear, mais que a liberdade religiosa, o reconhecimento do valor etnoterapêutico da Ayahuasca, o que as gerações antes de nós não possuíam oportunidade e resguardavam-se de publicar temendo serem responsabilizados por “curandeirismo”, prática esta prescrita pelo Código Civil brasileiro. Fazendo assim, para o exercício dessa etnoterapêutica poderão se credenciar aqueles etnoterapeutas idôneos, capacitados pela experiência de vida, dedicação e engajamento ético, os quais porventura venham a estabelecer um conselho próprio e assim conduzir suas questões comuns. 

Por exemplo, ao se definir que o "corpus" doutrinário de determinado Mestre consiste em seu método etnoterapêutico, do qual parte essencial das instruções não são transmitidas aos seguidores, pode-se favorecer que apenas possam se apresentar com o método e o acervo a ele referente aqueles grupos que demonstrarem merecer essa chancela por parte dos mantenedores de sua tradição. Se determinada instituição usuária alhures registrada como centro distribuidor de ayahuasca tiver alguma circunstância de problemas judiciais, não poderá alegar apenas a "liberdade religiosa" para requerer a defesa da comunidade ayahuasqueira, mas deverá demonstrar a legitimidade de seu desempenho etnoterapêutico, favorecendo-se com isso a sistematização desse trabalho especial em termos de compromissos éticos. Será muito melhor de como está hoje disposto, quando a fim de se atender a demanda burocrática apenas instituições que declarem formalmente possuir cunho religioso (objetivando assim sua liberdade de culto) podem ser habilitadas pelas autoridades policiais, pois desse modo os verdadeiros compromissos ideológicos das mesmas poderão ser falseados a título de se atender uma letra da lei, e a exigência de acompanhamento etnoterapêutico menosprezada. Encaremos de frente o tema: as culturas da ayahuasca não são todas religiosas, mas sim etnoterapêuticas. E é como tal que devem ser valorizadas.

O termo Etnia não deve ser confundido com Cultura e com o conceito de Raça, mas tem a ver com o "senso de diferença". Etnia é a população ou grupo social que, com relativa homogeneidade cultural e linguística, compartilhando história e origem comuns, é considerado como unidade dentro de um contexto de relações entre grupos similares ou do mesmo tipo, e cuja identidade é definida por contraste em relação a estes. Portanto, quero dizer Etnoterapêutica a Ayahuasca sem ressaltar se a Tradicional ou Amazônica, mas também quando aplicada às "novas tribos urbanas", aos novos contextos de interação cultural. Uma Etnoterapêutica que se molda à realidade do grupo com a qual está sendo trabalhada. Exatamente o que lemos na definição de Patrimônio Cultural Imaterial: é recriado de maneira permanente pelas comunidades e grupos em função de seu meio, de sua interação com o entorno e de sua história”.
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Fique bem claro que a função etnoterapêutica da Ayahuasca antecede a sua função religiosa, que foi instituída a partir da formação do trabalho do Mestre Irineu aqui no Acre. Essa função etnoterapêutica é a grande base, enquanto a função religiosa uma já adaptação ao uso da bebida por comunidades cristãs. E a partir daí, a "reinvenção" do uso da ayahuasca nos centros urbanos é um movimento de adaptação do uso da bebida por parte das "novas tribos". Onde, seguramente, a Ayahuasca novamente é um forte instrumento de construção de uma (nova) identidade étnica. Portanto, é um movimento cultural que deve ser acompanhado com atenção, não na esfera do Ministério da Justiça, como nos tempos passados, mas junto ao Ministério da Cultura, onde receba a colaboração técnica e científica para poder organizar tanto o resgate histórico quanto a sua promoção enquanto manifestação da diversidade amazônica. Afinal, a etnoterapêutica tradicional indígena do Acre, reinterpretada por uma nova geração de pajés-cantores, como Haru Kuntanawa, ShaneIhu Yawanawa, Fabiano Txaná Banê e José Banê Sales, dentre outros, vem encontrando um público cada vez maior em comunidades místicas do Brasil, Canadá e Europa. Através desse exemplo positivo de responsabilidade étnica tanto quanto ambiental é que deverá ser construído o futuro da Cultura da Ayahuasca no Brasil. 

Entendendo-se aqui a Cultura da Ayahuasca como Etnoterapêutica, maior do que as culturas religiosas que a compõem, quero acreditar que a declaração de ser Patrimônio Cultural Imaterial, do Brasil e da humanidade, possa ser-lhe outorgada em breve, representando esta conquista um modelo para a construção de um futuro melhor, para a Amazônia e todo o mundo. A legislação ambiental se encarregará de proteger o banco genético de Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis, ao passo que a legislação cultural poderá balizar o uso do patrimônio cultural comum às etnias das florestas da Amazônia Ocidental assim como à nação brasileira que a recebeu como verdade eterna e elixir santo.   

Para se ler -
“A Reinvenção do Uso da Ayahuasca nos centros urbanos”, por Beatriz Caiuby Labate. Editora Mercado de Letras, 536 pp. Prêmio de melhor Tese de Mestrado em Ciências Sociais em 2000, da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais)
 “O comércio da cultura: o caso dos povos amazônicos”, por Jean-Pierre Chaumeil. Boletim do Instituto Francês de Estudos Andinos, 2009, disponível em formato pdf na internet: http://www.ifeanet.org/publicaciones/boletines/38(1)/61.pdf

Um comentário:

Felipe Staboli disse...

Muito Interessante o texto. Concordo plenamente que o valor da Ayahuasca se dá muito mais pela sua função mantenedora, cosmológica e ambiental em função das comunidades indígenas, do que simplesmente seu "neo-ritualismo religioso" adaptado pela sociedade "branca".

Porém, não descarto o valor "religioso" no seu sentido mais puro, o de religar-se ao Divino que esta adaptação trouxe ao contexto urbano. Criou-se novas possibilidades de colocarmos em práticas as Verdades individuais.

No meu ponto de vista abriu-se então duas portas, uma com o verdadeiro sentido cultural o qual se sustenta pela manutenção de uma comunidade, seja ela Indígena ou Branca. Outra, na qual estimula-se o valor da Religião. A Ayahuasca é Momento-Mundo-Novo. Ela por si só permite este novo "Criar", já que é da sua natureza a revelação necessária. Se teu conhecimento te leva a um novo patamar, tem então, possibilidade de mudar e chegar a um novo ponto. Assim, ela lhe ensina o próximo passo.

Esta possibilidade é o que o homem branco sempre quis e buscou no conceito de religião. Por isso permitiu-se dar a ela essa denominação e caráter religioso. No mundo do índio é muito mais Inato essa percepção, tudo em sua essência sempre esteve dentro desse parâmetro de percepção alterada, ou consciência de vários níveis; onde real (físico) se mistura com o imaginário em um só plano de existência.

A Verdade do chá está nas matas e ele mesmo não permitirá que ela saia de lá.

Enfim, acredito eu, devemos guardá-la no mais fundo de nossos corações, e fortalecer o foco na sua origem, pra que as tradições indígenas não fiquem com o parâmetro nas modelações brancas. A Ayahuasca tem que continuar a valer dentro dessas comunidades, e o valor é lá. Aqui, deixem os brancos que usem da maneira que também lhes agrada e acrescenta, sobretudo, amor a ela.

Agradeço Meu Irmão por poder expressar minha Ideia, que também é só uma idéia, e em seu ritmo, vem e vai.

Abraço no Coração.

Até Breve

Felipe Staboli