“No fundo do beco sem saída que forma o Brasil na fronteira com o Peru, na direção das nascentes do Juruá e de seus grandes afluentes, o Envira e o Tarauacá, um pouco por toda parte, nas margens dos pequenos cursos d´água, no meio da grande floresta equatorial, estendiam-se ainda há vinte anos (1905) numerosas aldeias indígenas que falavam em sua totalidade um dialeto pano, aparentado e quase idêntico ao do clã dos Índios Panos (tatu gigante) do rio Ucayali. Cada clã levava o nome de um animal, combinado à palavra “nawa”, que significa “povo”. Tínhamos assim a “povo sapo” ou Poya-nawa; a “povo sagui” ou Chipi-nawa; a “povo esquilo” ou Kapa-nawa; os “homens-javali” ou Yawa-nawa; os “homens-arara” ou Chauen-Nawa; os “marimbondos”, s “abelhas”, os “jacamins ou pássaros-trombeta” que se intitulavam Bina-nawa, Chara-nawa, Neha-nawa, etc. Contrastando com todos os outros, mais numerosos e mais trabalhadores também, havia os “homens-vampiro” ou Kachinaua. Eram esses Índios originários de seus irmãos de língua e de totem do Ucayali, os Kashibo, tão célebres na história das Missões do Peru oriental? A coisa é mais do que provável. Kashibo não é mais do que a forma plural de Kashi; o Ucayali é vizinho do Juruá; e é muito natural que os Kashibo, expulsos do Ucayali pelos peles-vermelhas evangelizados, tenham vindo buscar refúgio no Juruá, ainda inexplorado pelos brancos. Nossos Kashinawa seriam portanto descendentes dos massacradores de missionários e de viajantes que percorreram o Ucayali no século XVIII.”
Estas considerações do padre católico Constantin Tastevin*,
em 1925, sobre os Kaxinawá que conheceu no Alto Rio Jordão, relaciona
diretamente esta etnia no Vale do Juruá com os Kashibo do Vale do Ucayali.
Estudos em lingüística podem demonstrar se há conexão direta entre um idioma
Pano e outro, mas não o quanto tempo de dispersão essas diferenças indicam, se
é que indicam, já que no caso dos clãs do tronco linguístico Pano, havia uma
convivência compartilhada dentro de uma mesma região, em forma de confederação.
Após o processo de guerra contra os índios para instalação dos seringais,
muitos clãs reagruparam-se por meio de seus poucos sobreviventes, e
reinventaram uma identidade singular como resultante desse processo histórico,
como os Katukina e Jaminawa. Mas vejamos um outro relato pouco posterior de
Tastevin para entender como funcionava a confederação Pano do Alto Rio Muru, e
como o nome Hunikuin, hoje exclusivo dos outrora chamados Kaxinawá, seria nesse
tempo um nome de união para todo Povo Pano:
“Os Huni-kuin – Antes
da invasão dos seringueiros vindos do nordeste do Brasil, o Muru era habitado
apenas por índios selvagens. Eles estavam mais concentrados aí do que em
qualquer outro lugar. A maioria falava o dialeto Pano e se autodenominava
Huni-kuin, “os verdadeiros homens”. Eles se dividiam em vários clãs, ora
aliados, ora inimigos, o mais importante deles era o dos Kachinaua (os homens
vampiros), que povoavam sobretudo os afluentes da margem direita do Médio Muru.
Eles aceitaram inicialmente sem hostilidade a vizinhança dos seringueiros, mas
pouco a pouco a cobiça, o ciúme, a grande diferença de mentalidade, de língua,
de civilização, de religião e de costumes das duas raças fizeram com que
conflitos, inicialmente parciais, estourassem em guerra sem perdão. Os
caucheiros primeiramente, ou seja, os peruanos que exploravam pioneiramente a Castilloa
elastica, que é preciso abater para
utilizar; em seguida os seringueiros, ou seja, os brasileiros, a população
estável, organizaram “correrias”, verdadeiras expedições armadas para desalojar
os índios do seu lugar a fogo e sangue e permitir aos civilizados trabalhar em
paz. (...)
Outros Huni-kuin moravam
no Alto Muru e seus afluentes. Os mais importantes eram os Yamináua (os
fabricantes de machados, Yami). Nas suas narrativas os Kachinaua atribuem
sempre aos Yamináua as invenções da civilização indígena. Os Jaminauas, como
dizem os brasileiros, seriam mais inteligentes, mais valentes, mais
independentes, mais bem encorpados e também mais brancos que os Kachinaua.
Foram eles que descobriram as propriedades purgativas, vomitórias e mágicas do
líquido secretado pelo sapo kampô; ensinaram e difundiram o uso do suco de cipó
ksya, ou simplesmente cipó (honi ou honê), que produz neles o efeito do ópio;
ensinaram o uso do rapé e da planta que escurece os dentes; fabricavam machados
de pedra, e é a eles também que devemos a introdução da noite (yams) no mundo.
Os Kachinaua lhes davam o sobrenome de Sáinaua, os gritalhões. Estiveram sobre
o Iboyassú, sobre o Jaminaua ou Motuya (rio das taiobas), afluente da margem
direita do Alto Muru, ou Guaraciaba, e na foz do Muruzinho de cima, sobre a
margem esquerda do Muru. Hoje eles estão para lá do Envira.
Assinalemos ainda os
Hsu-naua (rãs) misturados aos Kachinaua; os Paranaua (enganadores, ou
preparadores de emboscada) do rio Teixeira ou Marchachya (rio das pedras); os
Bastanaua, que um seringueiro chamava Bátaraua, cujo nome significa “filhos da
floresta”. Estes últimos se alimentavam, como Adão no paraíso terrestre, do que
lhes oferecia a natureza e daquilo que podiam roubar aos seus vizinhos
trabalhadores. Vivendo sempre à sombra das grandes florestas, e não vendo nunca
o sol, por assim dizer, senão através das árvores, eles ficaram mais brancos do
que os outros índios, e alguns deles tinham uma barba muito longa, o que é um
fenômeno entre os peles-vermelhas. Os seus cabelos, ao sol, lançavam reflexos
arruivados, o que foi a origem dos rumores de que havia, nas nascentes do MUru,
uma raça de índios brancos, de barba comprida, cabelos loiros e estatura de
gigante: trata-se tão somente de um engano, muito comum sob o sol quente dos
trópicos. (...)Entre o Envira e o Muru
existiam ainda, segundo a índia Parãnaua Tsátsa Wanó, os Kununaua, comedores de
cogumelos (kunu, cogumelo), os Tuchi ou Tochinaua (tuchi, amarelo; tóchi,
periquito verde com penas brancas nas asas); e os Kontanaua (konta, palmeira
jaci, dá coco e tem as folhas grandes). Hoje todos estes índios se retiraram em
direção às nascentes e à margem direita do Envira. Alguns Kachinaua habitam à
margem esquerda do Tarauacá.”
Sobre os Kaxinawá do Brasil serem ou não descendentes de
parte dos Cashibos do Peru dispersos ainda no século 18, e sobre o Povo Pano do
Brasil ter sido uma confederação étnica Hunikuin, da qual os Kaxinawá herdaram
o nome de Etnia Hunikuin na atualidade, será interessante mencionar aqui um
artigo de Cristhian Teófilo da Silva, publicado pela Revista de Estudos e
Pesquisas da FUNAI**:
“A ideia da
IDENTIDADE CONTRASTIVA, presente na literatura antropológica, aliada ao
reconhecimento da agencialidade política dos índios, mesmo os INTEGRADOS,
influiu decisivamente na adoção recente pelo órgão indigenista brasileiro da
Convenção no.169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Entretanto,
apesar de a IDENTIDADE CONTRASTIVA ser um conceito operacional, não se deve
tomá-lo em si mesmo, cristalizando a própria identidade étnica como um objeto
de análise estanque a partir do qual a identificação de um grupo étnico como
povo indígena poderia ser alcançada objetivamente. Afinal, o conceito de
identidade contrastiva promove uma polaridade analítica para a realidade das
sociedades indígenas do Brasil. De um lado estariam positivamente estabelecidos
os ÍNDIOS e de outro, negativamente, os BRANCOS. Entretanto, para o caso de
ÍNDIOS MISTURADOS, colocar esses de um lado e BRANCOS de outro promove uma
falsa interpretação da realidade, porque desconsidera outras categorias
sociais, que a própria mistura de ÍNDIOS MISTURADOS prova existir. Sendo assim,
ÍNDIOS e BRANCOS ou NÃO-ÍNDIOS, devem ser pensados enquanto construções sociais
oriunda de contextos ideológicos específicos em que estas categorias referem-se
mais a representações políticas de grupos de interesse locais e agências de
contato do que a descrições literais de atores sociais concretos e
heterogêneos. Nesse sentido, (...) concordo com Carneiro da Cunha (1987)***:
A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em
situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas
adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto se
torna cultura de contraste: este novo princípio que a subentende, a do
contraste, determina vários processos. A cultura tende ao mesmo tempo a se
acentuar, tornando-se mais visível, e a se simplificar e enrijecer,
reduzindo-se a um número menor de traços que se tornam diacríticos. (...) Em
suma, e com o perdão do trocadilho, existe uma bagagem cultural, mas ela deve
ser sucinta: não se levam para a diáspora todos os seus pertences. Manda-se
buscar o que é operativo para servir ao contraste. (...) Tudo isto leva a
conclusão óbvia de que não se podem definir os grupos étnicos a partir de sua
cultura, embora, como veremos, a cultura entre de modo essencial na etnicidade”.
Em seu estudo sobre os Yaminawa****, Calávia-Saez nos diz
que, sendo estes em outros tempos os melhores artífices do machado de pedra,
eram muito visitados pelos outros grupos em busca de comércio e, na repetição
destas visitas, certos acontecimentos serviram para distinguir uns grupos de
outros, aos olhos dos Yaminawa: assim, uns foram chamados de gente-cotia,
Marinawa, porque comiam sua mandioca; outros Kaxinawa, gente morcego, porque
andavam de noite; Chaninawa, porque mentiam, Mastanawa porque não cresciam ;
Amawaka - capivaras - porque como estas andavam na lama; ou Saranawa, abelhas,
porque comiam os favos de mel.
“Uma caraterística
constante da história Pano tem sido a facilidade com que tem se reorganizado em
conjuntos de escala muito diferente, sem por isso incrementar seu despojado
aparato político: vemos que essa facilidade é afim ao proteismo do seu sistema
etnonímico. Yaminawa - como, em potência, qualquer etnônimo Pano - é assim um
coringa, mas que como qualquer coringa ganha em cada jogada um valor bem
definido. O etnônimo cria etnia, porque grupos definidos por uma opinião
externa - mas gerada a partir de um acervo simbólico que eles compartilham -
tendem a se decantar como unidades políticas de fato, e mesmo a assumir alguma
das caraterísticas diferenciais que essa opinião lhes atribuía. Os Yaminawa são
um fantasma dos índios "civilizados" e de seus brancos, que toma
figura humana e política na medida em que o centro da selva - seu nicho lógico
- é ocupado. Não é raro assim que as histórias orais Yaminawa pensem no seu
passado a partir de uma antinomia (yura-dawa) ou de um caos de grupúsculos, ou
de uma espécie de quiasmas semânticos de grupos étnicos. As identidades só
existem dentro de um sistema - de nomes. Se isso acontece com os Yaminawa, deve
acontecer também com os outros grupos do seu entorno: é uma visão nominalista
da etnologia Pano, que de um lado irrealiza algumas unidades étnicas a que a
bibliografia atribui certa solidez, e de outro propõe como estrutural um
aspecto atomizado que essa mesma bibliografia costuma ver como produto de um
desastre histórico, o boom da borracha”.
Como sobreviventes, hoje no Ucayali os chamados CASHIBO-CACATAIBO
existem em número de 1700 pessoas. Os missionários franciscanos tomaram contato
entre os anos 1727 e 1736 em Pampa del Sacramiento. No século 19, os
cashibo-cacataibo estavam relegados às zonas mais pobres do território
ucayalino devido a interesses econômicos de parte dos franciscanos. Com a chegada
do boom do caucho sua situação piorou ainda mais. Entretanto, no final deste
período, a relação com os senhores do caucho melhorou pelo fato de um menino Cashibo
foi tomado dos pais e educado por um fazendeiro. Este nativo se transformou em chefe
de quase todo o grupo. Na década de 1930, os cashibos trabalharam na produção
de ouro, sob as ordens de um patrão. Sua situação mudaria quando chegaram missionários
norte-americanos do Instituto Linguístico de Verão (SIL – Summer Institute of Linguistics), o qual construiu várias escolas
nas aldeias e capacitou professores indígenas. Nos anos 70 e 80 o grupo aderiu
ao regime peruano de Comunidades Nativas. Mesmo assim, a situação dos
cashibo-cacataibo se complicaria com a presença dos cocaleros e dos guerrilheiros do Sendero Luminoso.
A sociedade deste grupo étnico está estruturada sobre a
base de grupos patrilineares e patrilocais. Ademais está dividida em duas
partes: os consanguíneos e outros ligados ao parentesco de tipo dravídico.
Predomina o matrimônio simétrico de primos cruzados. A agricultura de roça e coivara,
a caça, pesca e o extrativismo; a criação de aves, animais menores e gado são as
atividades às quais se dedicam os cashibo-cacataibo. Outro grupo ocasionalmente
vende bananas, carne salgada e galinhas aos caminhoneiros. Também muitos deles
se acham nos garimpos de ouro, e na produção de medicina natural (por exemplo, o
sangue de grado). Nas últimas décadas do século 20 sua situação se viu
complicada pela presença de narcotraficantes, subversivos, colonos e exploradoras
de petróleo. Recentemente, os Cashibo apareceram em documentário da National Geographic sobre sua pajelança de cura com a Ayahuasca, juntamente com os
parentes Shipibo-Conibo, que são o maior Povo Pano no Peru na atualidade e representam
talvez a mesma estrutura de amálgama étnico que os Hunikuins outrora unificados
no Vale do Muru, no Médio Tarauacá.
Pensando na união dos povos de língua Pano, Haru Kuntanawa
é fundador do Projeto Corredor Pano, e vem exercendo representatividade
internacional a fim de criar uma estrutura de intercâmbio cultural entre estas
etnias que compartilham a mesma raiz identitária da Ayahuasca assim como vários
conhecimentos etnobotânicos e científicos além do mero tronco linguístico. Na
construção deste futuro é que se insere esta proposta: na Bolívia temos os
Pacaguara, Yaminawas, e os Chacobo; no Brasil temos os Kaxarari e os Karipunã,
a leste, e Matís, Marubos, Mayás, Nukinins, Poyanawas, Kulinas-Pano, Araras,
Mangeromas, Kuntanawas, Yawanawas, Korubos, Matsés, Jaminawas, Katukinas e
Hunikuins; no Peru, além de alguns destes, também Amahuacas, Atsahuacas,
Capanahuas, Sharanahuas, Yamiacas, Remos, Nawas, Marinahuas, Mastanahuas, Chacobos,
Shipibos, Conibos e Cashibos-Cacataibos. Reunidos os sobreviventes, refaz-se a
memória coletiva e se criam meios para uma defesa comum de seus direitos humanos e de
seus direitos indígenas relativos às manifestações culturais e à propriedade
intelectual de seu patrimônio ancestral e seus conhecimentos etnobotânicos, com
os quais poderão construir o caminho de seu futuro em comum na Amazônia do
século 21.
FONTES:
(*) “TASTEVIN, PARRISIER – Fontes sobre Índios e
Seringueiros do Alto Juruá”. Org: Carneiro da Cunha, Manuela. Série
Monografias. Museu do Índio – FUNAI. Rio de Janeiro, 2009. 248p.
(**) “Identificação Étnica, Territorialização e Fronteiras:
A Perenidade das Identidades Indígenas como Objeto de Investigação
Antropológica e a Ação Indigenista”. Por:
Silva, Cristhian Teófilo da. Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI,
Brasília, v.2, n.1, p. 113-140, jul.2005.
(***) CUNHA, Manuela Carneiro da. “Etnicidade da cultura
residual, mas irredutível.” In: CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do
Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.97-108.
(****) CALAVIA-SAEZ, Oscar. “O nome e o tempo dos Yaminawa
– Etnologia e história dos Yaminawa do rio Acre”. São Paulo, UNESP, 2006.
Ver
também: Ser Peruano, “Comunidades amazônicas en Ucayali”.
Um comentário:
Adorei conhecer mais sobre estas etnias. Ótimo trabalho de pesquisa. Obrigado!
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