segunda-feira, 2 de abril de 2012

Os Últimos Sacerdotes da Natureza

foto de Ion David, Xinã Bena 2011, Cultura Hunikuin

Serão eles os primeiros mensageiros da nova dimensão que aí vem? É neste momento da história que os vemos aparecer no vulcão de sons e imagens projetadas no espaço multidimensional da rede virtual de informações, e os encontramos à mostra porque estão na grita por seus direitos de vida e existência cultural que são interdependentes e que representam direitos universais a serem esclarecidos à turba de alienados e aculturados bem como às legiões de fraternidades de tradições eruditas. Estão na África, na Ásia, na Europa e Oceania, mas mais significativamente brilham no continente americano como sobreviventes de um colonialismo ainda em processo por parte dos Estados aqui criados pelos descendentes dos europeus, onde sua resistência cultural esteve amparada por uma rica etnobotânica florestal protegida por estes pajés ameríndios como elo fundante de toda cosmologia e filosofia dentro destas suas sociedades de cunho coletivista. A Mãe Natureza, a Mãe Terra, Pachamama, ganha voz a partir destes sacerdotes e seus encantamentos rituais, e propõe a dimensão da comunhão de pensamento positivo como nota musical em vibrato ou onda corretiva pelas cordas matemáticas, e abre a consciência da Humanidade interconectada para a força vital do planeta e a importância de estarmos aliados (e alinhados) a esta.

Os pajés são vozeiros e ecos de vozes plasmadas pela interação com um ambiente natural sadio, isto é, em equilíbrio consigo mesmo. Enfrentam o desconhecido inalcançável dos meandros das estruturas jurídicas e sociais dos colonizadores, assumem a camisa e a torcida da nação que deles se aufere título de governo, irmanam-se entre tribos antes rivais ou muito distantes, dizendo-se todos parentes, pelo entendimento da intenção mútua de procurar meios que se defender da ignorância dos sistemas tecnocráticos estabelecidos que pretendem controlar o incontrolável que é a Natureza pois os que a admiram sabem o quão pequeno é o homem diante de seu Poder. Quem os ouve sabe que guardam atrás de algum pessimismo espontâneo uma cega confiança em uma força maior que a tudo pode transformar e reconfigurar, e esta é a força de sua fé.

Mas serão os cultos xamânicos que reexistiram até hoje em sua essência “cultos” à Natureza, no sentido de religião panteísta? Ou esses rituais de cura com plantas sagradas que proporcionam identidade étnica aos grupos que neles se associam são em verdade celebrações de vida, que não cultuam a planta enteogênica em si, mas o dom de acessá-la e dela adquirir sapiência, então portanto o possuem como dom sagrado e coletivo? Muitas vezes a percepção do homem ocidental distorce o entendimento dos fatos de acordo como ponto de referência: foi porque os invasores europeus temiam a um Deus Supremo e seus castigos que entenderam, ao escutarem os índios tupinambás chamarem o trovão de “Tupã”, que este seria o nome de seu Deus Supremo a quem temiam. Hélène Clastres nos explica em “Terra Sem Mal”, página 16:

“Toda a religião indígena que não afirme explicitamente a origem de `todas as coisas´ e, no ponto central da criação, a origem da própria tribo como o ato voluntário de um deus, de uma relação entre divindades ou entre seres humanos, forças divinizadas e a própria natureza deixa margem a uma discussão interminável a respeito do sentido do próprio ato, ou da sequência de atos de origem. São forças impessoais da natureza? Serão seres humanos punidos por seus deuses ou sacralizados com o ancestrais místicos, devido ao seu gesto de origem? É um ser divino, mas apenas ordenador e, depois distanciado dos humanos, deixando a cargo de forças ou divindades intermediárias a responsabilidade do cuidado do mundo e dos homens? É um ser divino pessoalizado e atento aos humanos, no sentido cristão da ideia de deus? A respeito dos tupis-guaranis sabemos que a interpretação de uma ideia de deus pessoal intrigava os europeus desde os primeiros cronistas e missionários. Afinal, em que criam os primeiros tupis? (...) Claude d´Abbeville: Embora os índios tupinambás tenham um juízo natural bastante belo, nunca se viu nação mais rebelde ao serviço de Deus do que eles... Não creio que haja nenhuma nação no mundo sem alguma espécie de religião, exceto os índios tupinambás, que até hoje não adoraram a deus algum, nem celeste, nem terrestre, nem de ouro, nem de prata, nem de pedra preciosa, nem de pau, nem nenhuma outra coisa que seja. (...) ”.

Não eram idólatras os índios brasileiros nem o poderiam ser pois as suas catedrais naturais eram os espaços de paisagem sagrada onde se contavam as histórias de sua identidade cultural, e os impérios ameríndios que resultaram de processos de urbanização de centros políticos e comerciais, e onde portanto houve ingerência de elites étnicas nos próprios sistemas de crença religiosa, aqui no Brasil não venceram as florestas que protegeram um modo de viver autônomo e de base comunitária nas aldeias que contemplavam as estrelas do hemisfério Sul e entendiam a vida na Terra como um reflexo dessa força superior. Idólatras eram os nauás, os outros humanos, que demonstravam o desequilíbrio de sua aflição ante os castigos eternos de um Deus ausente, e descontavam seu nervosismo atávico em existências hipócritas, onde o etnocentrismo cultural justificava toda sua veleidade passional de subjugar os que deles consideravam inferiores. Idólatras eram os que punham seu amor nas coisas para possuí-las e não para nelas compartilhar energias. Então a cura que esses mestres pajés vem fazendo no mundo doentio da crise do consumismo é apontar um outro parâmetro de entendimento e de relação humana com as energias em circulação nas forças da Natureza que nos percorrem, já que somos em boa parte H2O e osmoticamente nos unimos e repelimos continuamente na fricção do tempo sobre nossas mentes. Re-pensar a si próprio (conhecendo-se a si mesmo) é o primeiro passo para re-programar ou re-ordenar seu eu de modo direcionado a um objetivo ensejado. E isto as plantas de poder dos antigos sábios ameríndios permite acessar.

Os povos ameríndios da Amazônia persistem. Insistem em ser como gostam de ser. Antes, quiseram amansá-los. Diziam assim: este é índio manso, este é índio brabo... Para lutar por seus direitos civis, necessitaram subjugar-se como mansos. Mas agora, o que vêem, é que esses nauás com que eles convivem hoje na vizinhança das aldeias e nas cidades ribeirinhas, são os nauás brabos. Porque já apareceram aqui os nauás mansos: aqueles de bom coração, sem etnocentrismos, sem preconceitos culturais, que buscam ensinar coisas fraternas e corrigir a si próprios pelos exemplos de vida harmoniosa em comunidade que algumas aldeias ainda possuem. Talvez os “nauá” da Amazônia, hoje “filhos da terra”, não saibam respeitar os habitantes autóctones como esses “nauá manso”, que foram criados com acesso à muita cultura em núcleos civilizacionais urbanos, e muito admiram os povos ameríndios pela profundidade de suas tradições culturais. Mas a educação pode chegar para todos. Chega para o morador da aldeia, como chega para o forasteiro, como chega para o ribeirinho: surge da compreensão da necessidade de afinar os ouvidos para entender as sutilezas de linguagem uns dos outros e alcançar uma compreensão diversa, expandida. Afinal, a educação objetiva intrinsecamente a ética em nível do indivíduo e em nível de sociedade, e a discussão dessa ética é a interface entre o Homem Sadio e a Natureza Sanadora: e é isto o que os nossos pajés estão tirando de letra!... 
       
Unidos na força da Natureza-Mãe, dissolvidas as fronteiras do amanhã, provam os Pajés a inteligência de suas plantas, celebrando nelas os ancestrais e ícones do seu imaginário, e formam a corrente de energia necessária ao chamado: faça-se a Luz!

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