foto de Ion David, Xinã Bena 2011, Cultura Hunikuin
Serão eles os primeiros mensageiros da nova dimensão que aí vem? É
neste momento da história que os vemos aparecer no vulcão de sons e imagens
projetadas no espaço multidimensional da rede virtual de informações, e os
encontramos à mostra porque estão na grita por seus direitos de vida e
existência cultural que são interdependentes e que representam direitos
universais a serem esclarecidos à turba de alienados e aculturados bem como às
legiões de fraternidades de tradições eruditas. Estão na África, na Ásia, na
Europa e Oceania, mas mais significativamente brilham no continente americano como
sobreviventes de um colonialismo ainda em processo por parte dos Estados aqui
criados pelos descendentes dos europeus, onde sua resistência cultural esteve
amparada por uma rica etnobotânica florestal protegida por estes pajés
ameríndios como elo fundante de toda cosmologia e filosofia dentro destas suas sociedades
de cunho coletivista. A Mãe Natureza, a Mãe Terra, Pachamama, ganha voz a
partir destes sacerdotes e seus encantamentos rituais, e propõe a dimensão da
comunhão de pensamento positivo como nota musical em vibrato ou onda corretiva
pelas cordas matemáticas, e abre a consciência da Humanidade interconectada
para a força vital do planeta e a importância de estarmos aliados (e alinhados)
a esta.
Os pajés são vozeiros e ecos de vozes plasmadas pela
interação com um ambiente natural sadio, isto é, em equilíbrio consigo mesmo.
Enfrentam o desconhecido inalcançável dos meandros das estruturas jurídicas e
sociais dos colonizadores, assumem a camisa e a torcida da nação que deles se
aufere título de governo, irmanam-se entre tribos antes rivais ou muito
distantes, dizendo-se todos parentes, pelo entendimento da intenção mútua de
procurar meios que se defender da ignorância dos sistemas tecnocráticos
estabelecidos que pretendem controlar o incontrolável que é a Natureza pois os
que a admiram sabem o quão pequeno é o homem diante de seu Poder. Quem os ouve
sabe que guardam atrás de algum pessimismo espontâneo uma cega confiança em uma
força maior que a tudo pode transformar e reconfigurar, e esta é a força de sua
fé.
Mas serão os cultos xamânicos que reexistiram até hoje em
sua essência “cultos” à Natureza, no sentido de religião panteísta? Ou esses
rituais de cura com plantas sagradas que proporcionam identidade étnica aos
grupos que neles se associam são em verdade celebrações de vida, que não
cultuam a planta enteogênica em si, mas o dom de acessá-la e dela adquirir
sapiência, então portanto o possuem como dom sagrado e coletivo? Muitas vezes a
percepção do homem ocidental distorce o entendimento dos fatos de acordo como
ponto de referência: foi porque os invasores europeus temiam a um Deus Supremo
e seus castigos que entenderam, ao escutarem os índios tupinambás chamarem o
trovão de “Tupã”, que este seria o nome de seu Deus Supremo a quem temiam.
Hélène Clastres nos explica em “Terra Sem Mal”, página 16:
“Toda a religião indígena que não afirme explicitamente a
origem de `todas as coisas´ e, no ponto central da criação, a origem da própria
tribo como o ato voluntário de um deus, de uma relação entre divindades ou
entre seres humanos, forças divinizadas e a própria natureza deixa margem a uma
discussão interminável a respeito do sentido do próprio ato, ou da sequência de
atos de origem. São forças impessoais da natureza? Serão seres humanos punidos
por seus deuses ou sacralizados com o ancestrais místicos, devido ao seu gesto
de origem? É um ser divino, mas apenas ordenador e, depois distanciado dos
humanos, deixando a cargo de forças ou divindades intermediárias a
responsabilidade do cuidado do mundo e dos homens? É um ser divino pessoalizado
e atento aos humanos, no sentido cristão da ideia de deus? A respeito dos
tupis-guaranis sabemos que a interpretação de uma ideia de deus pessoal
intrigava os europeus desde os primeiros cronistas e missionários. Afinal, em
que criam os primeiros tupis? (...) Claude d´Abbeville: Embora os índios tupinambás tenham um juízo natural bastante belo,
nunca se viu nação mais rebelde ao serviço de Deus do que eles... Não creio que
haja nenhuma nação no mundo sem alguma espécie de religião, exceto os índios
tupinambás, que até hoje não adoraram a deus algum, nem celeste, nem terrestre,
nem de ouro, nem de prata, nem de pedra preciosa, nem de pau, nem nenhuma outra
coisa que seja. (...) ”.
Não eram idólatras os índios brasileiros nem o poderiam ser
pois as suas catedrais naturais eram os espaços de paisagem sagrada onde se
contavam as histórias de sua identidade cultural, e os impérios ameríndios que
resultaram de processos de urbanização de centros políticos e comerciais, e
onde portanto houve ingerência de elites étnicas nos próprios sistemas de
crença religiosa, aqui no Brasil não venceram as florestas que protegeram um
modo de viver autônomo e de base comunitária nas aldeias que contemplavam as
estrelas do hemisfério Sul e entendiam a vida na Terra como um reflexo dessa
força superior. Idólatras eram os nauás, os outros humanos, que demonstravam o
desequilíbrio de sua aflição ante os castigos eternos de um Deus ausente, e
descontavam seu nervosismo atávico em existências hipócritas, onde o
etnocentrismo cultural justificava toda sua veleidade passional de subjugar os
que deles consideravam inferiores. Idólatras eram os que punham seu amor nas coisas
para possuí-las e não para nelas compartilhar energias. Então a cura que esses
mestres pajés vem fazendo no mundo doentio da crise do consumismo é apontar um
outro parâmetro de entendimento e de relação humana com as energias em
circulação nas forças da Natureza que nos percorrem, já que somos em boa parte
H2O e osmoticamente nos unimos e repelimos continuamente na fricção do tempo
sobre nossas mentes. Re-pensar a si próprio (conhecendo-se a si mesmo) é o
primeiro passo para re-programar ou re-ordenar seu eu de modo direcionado a um
objetivo ensejado. E isto as plantas de poder dos antigos sábios ameríndios
permite acessar.
Os povos ameríndios da Amazônia persistem. Insistem em ser
como gostam de ser. Antes, quiseram amansá-los. Diziam assim: este é índio
manso, este é índio brabo... Para lutar por seus direitos civis, necessitaram
subjugar-se como mansos. Mas agora, o que vêem, é que esses nauás com que eles
convivem hoje na vizinhança das aldeias e nas cidades ribeirinhas, são os nauás
brabos. Porque já apareceram aqui os nauás mansos: aqueles de bom coração, sem
etnocentrismos, sem preconceitos culturais, que buscam ensinar coisas fraternas
e corrigir a si próprios pelos exemplos de vida harmoniosa em comunidade que
algumas aldeias ainda possuem. Talvez os “nauá” da Amazônia, hoje “filhos da
terra”, não saibam respeitar os habitantes autóctones como esses “nauá manso”,
que foram criados com acesso à muita cultura em núcleos civilizacionais
urbanos, e muito admiram os povos ameríndios pela profundidade de suas
tradições culturais. Mas a educação pode chegar para todos. Chega para o
morador da aldeia, como chega para o forasteiro, como chega para o ribeirinho:
surge da compreensão da necessidade de afinar os ouvidos para entender as
sutilezas de linguagem uns dos outros e alcançar uma compreensão diversa,
expandida. Afinal, a educação objetiva intrinsecamente a ética em nível do
indivíduo e em nível de sociedade, e a discussão dessa ética é a interface
entre o Homem Sadio e a Natureza Sanadora: e é isto o que os nossos pajés estão
tirando de letra!...
Unidos na força da Natureza-Mãe, dissolvidas as fronteiras
do amanhã, provam os Pajés a inteligência de suas plantas, celebrando nelas os
ancestrais e ícones do seu imaginário, e formam a corrente de energia
necessária ao chamado: faça-se a Luz!
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