domingo, 26 de agosto de 2012

O Espírito de Huáscar Inka


Sky Spirits, pintura visionária de Pablo Amaringo, do Imaginário Amazônico da Ayahuasca.

SEQUÊNCIA 9 _ O Sumo-Sacerdote e Manco Inka
...
A visita dos três soldados aconteceu em março de 1533, decorridos quatro meses da captura de Atahuallpa. Cerca de um mês mais tarde, portanto em abril do mesmo ano, temos em Cusco uma reunião entre o Sumo-Sacerdote e Manco Cápaq Inka Yupanki, irmão legítimo de Waskar que se fará depois conhecido como Manco Inka. O cenário é o Qorikancha arrasado pelo grande saque realizado pela retirada do resgate de Atahuallpa, e o horário as primeiras horas do dia, quando os raios de sol parecem mais dourados por entre a tênue neblina.
Manco Inka chegou e contempla desolado o templo vazio. O Sumo-Sacerdote entra acompanhado de dois sacerdotes que prudentemente se conservam à distância do encontro dos dois.
MANCO _ Meu tio, o Senhor mandou me chamar...
SUMO-SACERDOTE _ Manco Cápaq Inka Yupanki, é chegada a hora de conversarmos sobre o destino deste Império...
Se saúdam e o Sumo-Sacerdote conduz o príncipe, pouco mais velho que Waskar, a um aposento onde poderão se sentar. Enquanto caminham até lá conversam:
MANCO _ O Senhor deve ter o coração partido de contemplar essas paredes sem o esplendor de antes... Como o Supremo Criador aceitará toda essa desolação?
SUMO-SACERDOTE _ Em verdade já esperávamos que isso acontecesse... Lembra-te que teu irmão Waskar Inka ordenou que retirássemos daqui o sagrado óvulo que pertencia ao nosso Pai Manco Cápaq, e muitos o julgaram como louco? Agora sabes o porquê...
MANCO _ Esse maldito Atahuallpa! Como poderia querer ser Inka se desprezava nossa própria religião, que é o sangue e a vida do Império?
Entram no aposento onde se sentarão, e lá a velha Sacerdotisa que foi vista na seqüência anterior os aguarda com uma provisão de alimentos da região, para a primeira refeição do dia. Saúda-os, mostrando os alimentos (tubérculos, espigas cozidas de milho branco, pedaços de queijo, mel) e logo depois se retira para que conversem a sós. O Sumo-Sacerdote oferece um lugar para que Manco tome assento, e louvando a beleza dos alimentos toma seu lugar. Enquanto vão conversando, comem com as mãos e mastigam deleitosamente como se aproveitassem o sabor dos alimentos.
SUMO-SACERDOTE _ Pedi que viesses hoje ter sua primeira refeição comigo, príncipe, para que começando assim o dia juntos começássemos também a tratar de nosso futuro à frente do Império...
MANCO _ Nosso futuro?
SUMO-SACERDOTE _ O longo tempo em que Atahuallpa permanece prisioneiro já extenuou os guerreiros que haviam lutado do seu lado contra a nossa gente. Estão decepcionados porque percebem que foram ao fim de tudo derrotados, e agora ainda mais, que sabem que mesmo havendo recebido o ouro e prata com que Atahuallpa pretendia comprar sua liberdade, os homens brancos não o soltaram, antes disseram que ele será julgado como criminoso de guerra. Sabem que esses homens brancos são piores que diabos, que têm armas que cospem fogo e grandes animais sobre os quais caminham sem cansar os pés... Na verdade, sabem que Atahuallpa terminará ao final de tudo sendo morto, e nunca chegará a Cusco com sua falsa maskaypasha para proclamar-se Inka de nossa gente... Calicuchima já não dorme de tanta angústia, e Quisquiz parece ter se esquecido do que veio fazer em Cusco.
MANCO _ Está certo o castigo de Atahuallpa, e afinal foi para isso que meu irmão Tubalipa foi ter com os homens brancos e ajudou-os a chegarem até Cajamarca. Mas o grande Inka Waskar, onde ele está agora? É verdade que Atahuallpa fez com que o matassem?
SUMO-SACERDOTE (solene) _ Waskar vive!
MANCO (o rosto subitamente iluminado) _ Vive!!! Então teremos como expulsar os forasteiros...
SUMO-SACERDOTE _ Não!... Waskar conseguiu para si escapar das mãos de Atahuallpa, mas já não governa, não tem mais o destino de ser Inka e comandar o nosso povo... Entenda, Manco _ era essa a profecia que meu irmão, o grande Inka Wayna Cápaq, esperava que se cumprisse em seu filho. Sabíamos que seriam em número de doze os governantes desse Império, e foram _ um, Manco Cápaq; dois, seu filho Sinchi Rocca; três, o neto de Sinchi Rocca, que foi Lloque Yupanki; quatro, o grande Mayta Cápaq... Depois Cápaq Yupanki usurpou o poder, foi o quinto Inka; seu filho Inka Rocca foi o sexto; Yawar Tupaq, a quem chamavam Inka Yupanki, foi o sétimo, mas morreu pelas mãos da gente do Contisuyu, motivo pelo qual fizeram de seu tio Wiraqocha Inka o oitavo Imperador... Veio Pachakuteq Inka e reformou o Império, pondo fim a essa dinastia amaldiçoada, foi o maior Imperador que esta terra já possuiu e o que teve maior poder. Tupaq Yupanki, seu filho, foi o décimo Inka, e Wayna Cápaq, meu irmão, teve a dita de saber que em seu tempo começariam a chegar à esta terra os primeiros homens brancos, e que o filho que escolhesse para sucede-lo devia estar preparado para o pior...
MANCO _ Ninancuyuchi era o herdeiro escolhido por meu pai!
SUMO-SACERDOTE _ Sim, mas porque ele sabia que existia entre nós gente que pretendia usurpar o poder, como fizera Cápaq Yupanki contra seu irmão Tarko Wamán que era o legítimo herdeiro... Por isso disse a todos que Ninancuyuchi seria Inka, pois assim, quando o mataram, descobriu quem era a víbora que havia entre nós!
MANCO _ Atahuallpa...
SUMO-SACERDOTE _ Por isso Atahuallpa foi levado para bem longe daqui, e por isso Waskar seu irmão deu-lhe poder para que ele ficasse em Quito...
MANCO _ Agora eu compreendo.
SUMO-SACERDOTE _ Lembra quando a guerra começou? Waskar Inka mandou dizer a Atahuallpa que viesse a Cusco dar conta de seu trabalho, lembra-se disso? Sabíamos que Atahuallpa não viria, com medo de perder seu comando, e começaria a lutar contra nós...
MANCO _ Sim, me lembro.
SUMO-SACERDOTE _ Isso aconteceu quando chegaram em Cusco os primeiros homens brancos _ Don Cesar, Hernán, Ramón e Javier... Foi então que Waskar teve a confirmação de que era tempo da profecia se cumprir, e decidiu chamar Atahuallpa aqui para que o conflito tivesse início e assim os invasores que chegassem pelo mar teriam motivo de ir primeiro contra Atahuallpa, e não contra nós...
MANCO (perplexo) _ Agora compreendo o que meu irmão quis fazer!
SUMO-SACERDOTE (parecendo mais sombrio) _ A única morte digna para um Inka é aquela em que ele termina seus dias por vontade do próprio Criador, lutando pela sua liberdade... Lembra-te sempre disto, Manco: teu dia também chegará.
MANCO _ O que o Senhor quer dizer? Que eu serei Inka?
SUMO-SACERDOTE (tentando sorrir) _ Já tens um nome talhado para essa tarefa: Manco Cápaq Inka Yupanki... Na verdade, temos de fazer crer a toda a gente que não esperamos mais a volta de Waskar, que para nós o temos por morto, e que portanto o conselho reunido dos clãs escolherá o nome de um dos príncipes para suceder a Waskar, já que Atahuallpa não pode pretender o poder, não tem sangue de filho do Sol, não merece ser chamado de grande Inka entre nós...
MANCO _ O Senhor me deixa sem fala...
SUMO-SACERDOTE _ É importante que os homens brancos já não procurem por Waskar. É mais importante ainda que os homens de Atahuallpa constatem que nós não acreditamos que ele possa estar vivo... Faremos a reunião do conselho, e por teu valor e nobreza é certo que todos concordarão em fazer de ti nosso rei, com o nome de Manco Inka.
MANCO (confuso) _ Bem sabeis que não estou preparado para tal, e sequer tenho irmã com quem me casar para ter uma descendência legítima...
SUMO-SACERDOTE _ Manco Inka... Governarás, mas não terás verdadeiro governo: não vês o estado em que deixaram esse Templo sagrado aqueles homens? É uma gente cruel a que vem dominar nosso povo, é uma gente que quererá de nós tudo o que temos, e que começará pondo fim à nossa religião, aos nossos templos, aos nossos lugares de celebração... Para eles, somos nós os diabos... Eles trarão outro modo de celebrar o Supremo Criador, a imagem da dor e do martírio, e nós teremos de aceitar. Até o dia em que nossa terra possa voltar a dar frutos... Mas até lá, todos nós, desse tempo, já estaremos mortos, não veremos esse dia em que o povo das montanhas será liberto da opressão dos homens brancos...
MANCO _ Se é assim, é difícil que eu consiga receber o nome de Manco Inka. Prefiro ir para a selva, e encontrar meu irmão Waskar...
SUMO-SACERDOTE _ Não o farás! Se aproxima a grande festa do Inti Raymi, e talvez seja a última oportunidade que teremos de comemorá-la conforme a tradição... Nessa festa serás tu quem se apresentará como comandante de nossa gente, pois é este o teu destino, ser lembrado para sempre como Manco Inka. E tu ainda, em nome de nossa família, dos filhos do Sol, receberás em Cusco o chefe dos homens brancos que virá para nos governar... Fará isto para que a gente de Atahuallpa se dê conta de que perderam, de que foram derrotados, de que o poder de Waskar Inka jamais passou a Atahuallpa, que o poder de Waskar Inka passou a ti, seu verdadeiro irmão, seu verdadeiro amigo...
MANCO _ Não os poderei obedecer, meu tio, e eles hão de querer me matar...
SUMO-SACERDOTE _ O dia em que perceberes isso, junta tua gente, sai da cidade, vai à selva _ com certeza encontrarás um refúgio, mas nunca tão longe que a mão dos inimigos um dia não te alcance. Mas morrerás em liberdade, pelas mãos do Criador, isso eu te posso garantir...
MANCO _ E nunca mais verei meu irmão Waskar?
SUMO-SACERDOTE (erguendo-se) _ Estarás protegendo-o, tranqüiliza teu coração com esta certeza: tudo o que farás de hoje em diante será para defender a vida e a paz de teu irmão. Guarda este segredo, do que conversamos entre nós, e te sentirás feliz no momento de tua morte.
MANCO(levantando-se) _ Se é assim, eu serei Inka!
O Sumo-Sacerdote abraça o príncipe Manco Cápaq, que irrompe em pranto.
Plano de conjunto, música de fundo, termina a sequência.
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Trecho do Roteiro Cinematográfico "WASKAR E O VINHO MÁGICO", resultado das pesquisas sobre o Rei Huascar e porque Huascar Inka não possui o devido destaque na historiografia peruana. Na verdade Atahuallpa nunca entrou em Cusco como Imperador de fato, nem foi legitimado pelos sacerdotes principais do Tahuantinsuyu. A imagem de Atahuallpa prisioneiro foi usada pelos espanhóis como um eficaz golpe de marketing político em pleno século 16 a fim de apresentá-lo como rei avassalado, ícone da derrota espiritual do povo andino, mentira esta que surgiu para justificar um inequívoco fato histórico: nunca as tropas de Pizarro puderam chegar ao verdadeiro Inka.
Autoria de Eduardo Bayer Neto, que pretende transformá-lo em filme de animação numa produção Brasil-Peru. Direitos Autorais reservados na BN. Outras informações sobre minha pesquisa, consultem os links: 

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