Há coisas que duram para sempre. Não os livros. Entre os
humanos a magia da letra escrita, cuja expressão em som tem o seguro dom de
comunicar a voz de quem inexiste ou já deixou o mundo dos vivos àqueles que de
outro tempo/espaço desfrutam, foi um primeiro segredo, os primeiros códigos de
registro. A busca pela permanência vem do homem preocupado em marcar presença
em uma paisagem determinada correspondente à grande parte de sua identidade
básica: as raízes da cultura são entrelaces de sonhos compartilhados sob um céu
em comum, dentro de um horizonte-limite estabelecido por regras identitárias. Os
livros sagrados são totens e tabus, inscrevem-se no imperecedouro, calhau do
rio do tempo que recolhe o conjunto daquilo que chamamos maravilhas das civilizações,
maravalhas que são o refugo das esperanças mais indeléveis, reciclagem das
entranhas planetárias expostas por seus filhos humanos sedentos de sabedorias,
e talvez hajam pérolas trituradas por alquimistas das palavras na pretensão de
engendrar outra nova esfera, quando na verdade um grão de areia (e a natureza
da ostra) seja tudo o que é preciso... Mas livros não escapam a consumição das
eras, despedem-se muitas vezes insepultos, desfazendo-se em suas próprias
carnes, virando pó como o homem que dele se alimentava e nutria. O que
permanece é só o que o homem guarda consigo, gravado em sua alma, e reformula
de acordo com o que encontra ao seu redor no momento de sua vida, que na
fruição dos milênios todos não passe talvez de uma vertiginosa fração quântica.
Um a um, passa a corrente.
As culturas humanas têm o dom de dar suporte a experiências
coletivas de mundo, servindo como plataforma e portanto impulsionando a
liberdade de seus indivíduos. Ao mesmo tempo essas mesmas culturas também
servem quase sempre para limitar, constranger, coibir, cercear, esvaziar de
conteúdo próprio, a tudo aquilo ou a todo aquele que não se enquadre em seu
sistema ordinário, seja oriundo dela própria ou nela insertado ou contrastado
posteriormente. Os limites do Eu e do Tu, do Eu e do Outro, os instrumentos
culturais de Identidade e Alteridade, são sistemas que balizam a vida em
sociedade, e embora pretendam justificar-se, por noções religiosas ou
hierárquicas, como “ordenações celestiais”, são seguramente meros “memes”
culturais engendrados por seres pensantes chamados Homo sapiens.
As culturas se adaptam, ou morrem. O excesso de
especialização, o nicho ecológico restrito, a inflexibilidade em relação às
interações com outros seres, são etapas que conduzem à extinção de uma espécie
viva na natureza, e com as culturas humanas não acontece diferente. Faz-se
necessário avaliar a capacidade de autoadaptação para arriscar transformações,
o que é o mesmo que dizer que faz-se necessário consciência. Uma consciência
holística do processo referente, isto seria um foco estabelecido para uma
progressão que levasse o ser (ou a cultura) a um novo estágio (de ser, ou de
cultura) onde o diagrama ou espectro de ações fosse reconfigurado. Esta
integridade muitas culturas indígenas da Amazônia e de outras regiões da
América mantém, e por isso não podemos considerar que se dirijam à extinção,
pois praticam um exercício adaptativo já há muito tempo, observando os ritmos
maiores da natureza e integrando-se a eles ao longo de sua floresta-jornada, sempre
pronta a reconfigurar-se. São especializadas em um corpus cultural específico
sim, mas, sendo grandemente permeáveis entre si, as culturas ameríndias
aprenderam o jogo da sobrevivência coletiva. Resta saber se o ritmo acelerado
do tempo do trabalho tecnologizado lhes concederá sustentabilidade para tamanha
façanha.
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