domingo, 14 de julho de 2013

A Origem Védica da Matrix


O deus Brahma

Encontramos na literatura vedântica a chave que revela a origem da natureza ilusória ou representativa do mundo: a cópia do soma, a usurpação da divindade, que descobre, por sua vez, aos deuses como simuladores.

Um desejo permeia o misticismo de todas as eras: arrancar o véu da ilusão. Mas para poder penetrar esse tecido, que algumas vezes é descrito como a vestimenta de uma deusa ou um hermético castelo, que se confunde com a natureza e o mundo fenomenológico, primeiro se deve detectar sua existência: o ato fundamental também descrito como ver o invisível, despertar em um sonho ou tomar consciência de que a realidade é falsa. A filosofia gnóstica ideou o conceito de stereoma para significar uma criação sobre a criação, uma espécie de realidade virtual ou simulação desenhada pelos Arcontes, senhores planetários que aplicam um encantamento sobre a realidade verdadeira. A evolução desta ideia, como mostramos em várias ocasiões em Pijama Surf, se converte na simulação informática conhecida como A Matrix.  A mais penetrante narrativa de ficção científica de nossos dias que é uma soma das ideias de autores como Phillip K. Dick, Jean Baudrillard, William Gibson e animações ciberpunk japonesas como Ghost in the Shell. Um remix da sofisticação da narrativa do “sonho dentro de um sonho” – a mente já extravasada como um software.

Existe, entretanto, uma origem mais remota para esta ideia que atinadamente a modernidad chamou Matrix (palavra que compartilha raiz com “matéria”, “medida” e “maya”).  Se trata da literatura védica, a história dos Rbhus “os forjadores”, “filhos dos homens que eram reconhecidos por seus olhos de sol”, os primeiros mortais que alcançaram a divindade, ascendendo ao céu convidados por Indra e os Asvin. Alguns mitos se destacam e conduzem até significarem a matéria mesmo do inexplicável, o coração do mistério, mas segundo alguns relatos fragmentados, os Rhbus, não conformados com haverem alcançado as esferas superiores, in coelestibus, quiseram provar do soma, a bebida dos deuses que outorga a imortalidade. Recebidos em seu lar por Savitir “aquele a quem nada se pode ocultar”, depois de uma letargia de 12 dias, algo assim como o rito de passagem ou a ressaca de sua divinização, foram despertados pelo Cão Celeste e conheceram a Tvastr, “o artífice divino, zeloso guardião do soma”. Em um trecho memorável que és uma cifra holográfica de "a literatura e os deuses", Robero Calasso nos conta:

Isto foi o que aconteceu: a taça na qual os deuses e Tvastr bebiam o soma era única. Era o único. Os Rbhu a olharam, a estudaram. Depois “reproduziram quatro vezes aquela taça do Asura (Tvastr), que era única”. Como o conseguiram? Medindo-a com precisião: usando sua arte, que era maya, a “magia medidora”, segundo a luminosa tradução de Lilian Silburn. Tvastr abriu enormemente os olhos quando viu aquelas quatro taças, que resplandeciam como novos dias. Disse: “Queremos matar aos que contaminaram a taça divina do soma”. Não está claro o que aconteceu a seguir. Se perceben também sombras femininas. 

Este ato de magia artesanal, que se lê como uma história detetivesca de bruxaria, que usurpa a mesma qualidade divina, a luz prístina do mundo, é definitivo e se derrama (continua se derramando como de uma taça infinita) sobre a realidade. Aquele que cai é o mundo inteiro, exatamente tomando o lugar do mesmo mundo. O fantasma mais perfeito é aquele que é um corpo idêntico. Mas é um fantasma e essa é toda a diferença. Esse ato arruinou para sempre a relação entre os homens e os deuses, sob o conjuro do artifício.

Os Rbhu haviam chegado demasiado longe, ao lugar onde crescem juntos e logo se separam o fetiche e o reflexo. Enquanto o único persiste, o simulacro permanece prisioneiro em seu seio. Mas quando as taças se multiplicaram, se derramou desde o céu a incessante catarata de simulacros, na qual o mundo vive desde então[...] Se a cópia significa a extinção do único, na esteira da cópia aparece a morte. Os primeiros simulacros, são as imagens e as aparições dos mortos.

Se sugere que o estigma da cópia provém de recordar “um tempo remoto no qual também os deuses haviam pisado a terra como simples mortais”.  O poder dos deuses se estriba no segredo de que os mortais podem fazer cópias e ser como os deuses (revelando que a matéria é programável).



Platão fala que os demiurgos (o nome utilizado para a divindade que simulou o mundo) eram artesãos que copiavam vasilhas na periferia das ágoras.

Borges descreve em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, a que poderia ser uma civilização em um universo paralelo: ”Os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens”. Este é o pavor metafísico da cópia, que o poder legisla proibindo (como  ocorreu na Idade Média, a bruxaria e a sexualidade orgiástica, eram vistas como a mesma profanação).

A ressonância moderna da cópia tem a ver com a inteligência artificial e a realidade virtual: uma copia a mente, que talvez em sua origem gerou a própria realidade (o segredo dos deuses é que o mundo é um artifício), a outra copia a natureza – o vazio dançante – e a substitui com a hiperrealidade (a matéria, o maya, é a primeira simulação). Detrás do ar e da parede, se podem vislumbrar alfanuméricos brilhando suavemente? Existem cabos detrás das estrelas?  Também nos Vedas, via Calasso, vislumbramos na Criação de Prajapati, o código que dá suporte à representação, o grande teatro, que é o mundo:

Em seu entorno tudo era novo e, ao mover o olhar,  podia ver ainda detrás das manchas da vegetação, detrás das silhuetas das rochas, um número, uma palavra, uma equivalência: um estado da mente que se aderia.

Twitter do autor: @alepholo
Ensaio de Alejandro de Pourtales, publicado originalmente em Pijama Surf : let´s #freetheweb !

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