sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Etnoterapêutica da Aiauasca: Ética e Memória

 
O Retorno, arte digital representando o encontro do Mestre Irineu Serra com o pajê Pisango no Alto Rio Acre.

Todas as religiões são construções de identidades étnicas elaboradas por artífices humanos com base em experiências tanto sensoriais quanto parassensoriais (que independem dos sentidos proativamente): o que chamamos construtos culturais. A religiosidade é uma demanda espontânea do ser coletivo pela necessidade de uma regra comum e por isso os códigos de conduta religiosos foram as primeiras leis que a humanidade desenvolveu para seu alicerce, ainda antes de qualquer forma escrita, e, por isso os exercícios mnemônicos constantes nas recitações e litanias, a seleção de indivíduos hábeis ao aprendizado de memória, a necessidade da tradição oral para a conservação de segredos, e claro, também para a ocultação do sagrado que, de grosso modo, favorecia as benesses de classe pelo papel de “interlocutores privilegiados” com os poderes superiores da Natureza divinizada.

Na Grécia Antiga, o Aedo era o Poeta-Cantor, e sua arte era considerada um culto à Memória. Esses artistas e suas celebrações rodeando um centro de força edificado como plataforma de contato interdimensional... foram comuns a muitas culturas em toda parte do mundo, o que é demonstrativo não de uma unidade cultural mas de uma universalidade da formação das religiões a partir a necessidade de edificar uma identidade étnica para servir como meio de controle das coletividades e também como parâmetro de suas interrelações sociais.

Não foi por acaso que o Estado Imperial Romano se metamorfoseou em Igreja Católica Apostólica Romana: se as instituições políticas perecem, um sistema político consegue se perpetuar se estiver embutido ou atrelado a um sistema religioso, pois este, enquanto cultura, permanece no âmago dos indivíduos e suas famílias, e não apenas na esfera pública. Enquanto Igreja, um Império pode chegar até a intimidade das pessoas, o que um Império enquanto submissão armada não consegue jamais ocupar. O monoteísmo imperialista surgiu como conceito no mundo mediterrâneo através do povo hebreu, por isso uma seita periférica como a dos cristãos conseguiu ser absorvida pelos romanos interessados em desenvolver um império hegemônico mundial. O profeta torturado sob o selo dos césares foi elevado ao panteão supremo por inspiração do Imperador Constantino, que viu sua mãe Helena absorver a exótica crença de modo surpreendente, e renovou o Império Romano ao criar o Cristianismo como religião de Estado. Na verdade, foi Constantino quem fundou a Igreja Católica nos moldes que conhecemos hoje, e não o Apóstolo Pedro, icônico pescador de almas, o velho galileu feito mártir em Roma sobre as comunidades étnicas de interação hebréia na geografia do Império, política que surgiu da inspiração de um intelectual que transitava entre tais culturas, o cidadão romano Saulo de Tarso. São Pedro e São Paulo comemoram-se no mesmo dia em Roma e em todas as igrejas do mundo romano desde então. Roma pereceu, mas a noção de Império Cristão permaneceu no chamado Ocidente até Carlos Magno representar sua integração com um sistema de linhagens das famílias reais das monarquias européias, onde se elaborou uma estrutura feudal de posse do espaço físico em uma dimensão espiritual, ou seja, cultural, internalizada, resistente pois persistente ao modo de atavismo inconsciente ou inconscientizado.

A Bíblia diz que Salomão foi rei de muita sabedoria, e um dos dizeres a ele atribuídos menciona que não devemos confiar em nenhum homem, apenas em Deus. Se as religiões são construtos humanos, será que não podemos nelas confiar? Será que precisamos desconfiar de nossas religiões todas, que estão, enquanto referências culturais obrigatórias, incorporadas ao âmago de cada um ser humano? Precisamos, sim, não confiar nos homens e na obra dos homens, pois sua visão é demasiado estreita em relação à amplitude da visão de Deus. Passar pela porta estreita, como predica o Evangelho, não será então focar a visão em um objetivo? Excesso de foco nunca existe, o que acontece de existir são problemas de foco exclusivo ou visão multifocal: acredito que existam pessoas que necessitem de um tipo de aprendizado vivencial muito focado, e outras aprendam melhor por uma abordagem mais abrangente, mas é bem certo que é mais fácil trapacear, manipular ou deformar o aprendizado quando existe foco exclusivo, como na formação de tropas de elite, este o perigo dos fundamentalismos e fanatismos, vistam estes a face política ou a religiosa.

“Abre o olho, mané...” – em tupi-guarani, língua geral dos primeiros brasileiros, Mané é “pessoa”, enquanto no português do Brasil atual Mané é um manoelzinho, um estrangeiro tosco, sem percepção das diferenças daqui e de lá, que entende tudo ao pé da letra e não através das letras... A expressão popular de advertência ou alerta, mostra que aqui neste canto do mundo, onde muitas culturas em efervescência colidiram e continuam se misturando, esperto é quem percebe o seu redor e vê o jogo que avança  para melhor dominar a bola.

Mas porque seremos o Brasil um povo de visionários artistas que plasmaram tamanha identidade polidiversa, e que sente como necessidade o sonhar com uma cultura plural? A Jurema, no Nordeste brasileiro, como complexo cultural construtor de uma identidade étnica de resistência indígena, é o contraponto irmão da Aiauasca no Estado do Acre (no Peru se grafa Ayahuasca, mas qual o problema de se memorizar cinco vogais na ordem correta?), Aiauasca hoje já em realização de sua inclusão no Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC, junto ao Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, do Ministério da Cultura. Em ambos complexos culturais vemos uma manifestação ritual de fundamentação espiritualista (de comunicação com espíritos de pessoas, vegetais, animais e minerais), com musicalidades próprias que remontam a origens precolombianas.


Modus vivendi etnoterapêutico: nos primeiros tempos da Vila Céu do Mapiá, sede do então Centro Eclético da Fluente Luz Universal “Raimundo Irineu Serra”, no Estado do Amazonas, momento da debulhação do feijão produzido pela comunidade aiauasqueira liderada pelo Padrinho Sebastião Mota.

É curioso que, tendo sido o Catimbó de Jurema muito perseguido e menosprezado pelas sociedades nordestinas enquanto manifestação de uma religiosidade popular que teve de ficar oculta por destoar das convenções sociais e religiosas, ainda não houve suficiente mobilização nem da comunidade juremeira nem dos intelectuais da região para o reconhecimento dessa sua cultura de raiz, mas é interessante que, no Acre, tenha sido justamente por uma necessidade de legitimar essas manifestações religiosas populares que se tenham constituído os primeiros centros aiauasqueiros, os quais paulatinamente se coordenaram de modo a defender interesses comuns, e assim, baseando-se na atual legislação cultural, tenha se dado início ao processo de registro desse patrimônio da cultura popular. Segundo Antonio Alves, representante do Alto Santo na Câmara Temática da Ayahuasca em Rio Branco, esta iniciativa foi tomada no sentido de servir e colaborar com toda a sociedade brasileira, e é bem verdade que tais diretrizes estão previstas nos próprios fundamentos legais desses centros, o que a inclusão do tema da Aiauasca Indígena nesse INRC, enquanto demanda apresentada por jovens lideranças e pajés-cantores indígenas do Acre, deve também servir para ilustrar ao Povo da Jurema que o caminho do futuro é o entendimento do papel dessas bebidas rituais na etnoterapêutica peculiar a cada cultura. 
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O que Kariris-Xokós, em Alagoas, e o Povo Xakriabá, em Minas Gerais, encontraram na Jurema como instrumento de reconstrução de sua identidade étnica, é o mesmo que os Shipibo-Konibo, no Peru, e os Kuntanawa, no Brasil, estão fazendo com a Aiauasca: seu alicerce maior. E quando falarmos concretamente na Etnoterapêutica dessas plantas, estaremos começando a compreender as responsabilidades que todos os que desses saberes se querem adonar. “Há um tempo para cada coisa no mundo: um tempo para plantar, e outro para colher...” Um novo Cristianismo não-ideológico, que é mais uma ética endógena pela compreensão das energias que circulam no universo, está surgindo na floresta, pela interação de todos esses seres da Criação. 2014 promete! Vamos positivar nossa memória...!

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