sexta-feira, 2 de março de 2012

O Poder da Palavra


O dom de Adão era o mesmo que o de Orfeu: dar nome ao que não tinha. Por isso, para entender palavras de prata e silêncios de ouro, recomendo a leitura de: “O Poder da Palavra – Adão e os Animais na Tapeçaria de Gerona”, em: Franco Júnior, Hilário. A EVA BARBADA: ENSAIOS DE MITOLOGIA MEDIEVAL. 1996, Editora da USP. Acho importante apresentar este excerto das páginas 112-114, para desenvolver um raciocínio aplicado: 

"" No judaísmo, segundo a expressão bíblica, “a morte e a vida estão em poder da língua”, como demonstra o fato de o universo ter sido criado pela palavra de Deus. Contudo a expressão mais clara daquele princípio estava no próprio nome de Deus, tão forte que era impronunciável. Todos os nomes divinos eram poderosos: “Quem evocar o nome do Senhor será salvo”. O cristianismo, inserido na mesma estrutura mental, também acreditava no poder da palavra, sobretudo na palavra de Deus, que é como uma “espada”, e dos nomes divinos, que “nenhuma boca de homem deve pronunciar se não estiver em perigo de vida”. O islamismo aceitava igualmente esse poder mágico, sobretudo a corrente sufista, para cujos adeptos o caráter sagrado das palavras de Alá era tal que elas deveriam ser repetidas independentemente de o homem compreendê-las. Para os celtas, um dos principais heróis da corte de Artur era Gwrhyr Gwaslstawt Ieithoedd, literalmente “intérprete de línguas”, aquele que todos os idiomas existentes.

Herdeira de todas essas tradições, a sociedade cristã ocidental também reservava lugar importante à palavra na sua visão do mundo. Ela era considerada criadora, mas também destrutiva, como para egípcios, judeus e celtas. Mal utilizada, ela poderia levar ao aparecimento do Diabo sob forma animal, como faziam os hereges de Orleans em princípios do século 11. Mas poderia também dominar os demônios, como fez São Marcial de Limoges, segundo uma hagiografia da mesma época: conhecedor de todas as línguas, o santo conjura os anjos maus e força-os a dizerem seus nomes, forma de dominá-los e de poder então ordenar que desapareçam para sempre no deserto. Assim como possuir um nome é existir, conhecer o nome é controlar aquilo que ele designa. Por isso mesmo, certos objetos recebiam nomes, caso das espadas de alguns heróis como Cid, Rolando, Olivier, Turpin, Ganelão, Carlos Magno e Artur. Enfim, saber usar as palavras equivale a uma prática de poder, por essa razão Deus tinha feito de Moisés um orador.

O poder da palavra era visto como algo efetivo, daí por que a sociedade medieval tinha um vasto campo semântico de violência verbal. O modelo era bíblico, pois a própria Divindade havia amaldiçoado a serpente responsável pelo pecado de Adão e Eva. A maldição de Noé sobre Cam era considerada a origem do fenômeno social da escravidão. De acordo com essa visão – apesar de São Pedro falar em “bendizer aqueles que te maldizem” e de São Bento haver recomendado aos monges “benzer, não maldizer” – a documentação monástica medieval mostra diversos exemplos de fórmulas de maldição. Reconhecendo a eficácia simbólica da palavra e desejando restringir seu uso, em meados do século 11 Pedro Damiano relembrava as advertências bíblicas contra o “vício da língua”; de fins do século 12 a meados do 13 os teólogos sistematicamente discutiram, avaliaram e classificaram diversos “pecados da língua”; na segunda metade do século 13, o poder monárquico recém-fortalecido legislava contra a blasfêmia, como fizeram Luís XI na França e Afonso X em Castela.

Bem empregada, como na confissão, a palavra salva. Com exceção de Graciano, todos os teólogos do século 12 consideravam a confissão obrigatória, o que o Concílio de Latrão de 1215 regulamentou ao impô-la ao menos anualmente a todo cristão. Apesar de a cultura eclesiástica insistir em que a confissão deve ser dirigida a um sacerdote, na ausência deste ela podia ser feita mesmo a um leigo. A necessidade mítica da expiação pela palavra era mais forte do que as restrições ideológicas. A palavra salva mesmo a posteriori, como nas preces e missas rezadas pelas almas dos mortos. Porque a palavra é poderosa, quando não pronunciada ela se torna perigosa. O silêncio de Percival, que não fez a pergunta adequada, prolongou os sofrimentos do Rei Pescador e de sua terra. Misteriosa e ambígua, a palavra estava na base de tudo. Como dissera o próprio Cristo, “por tuas palavras serás justificado e por tuas palavras serás condenado”.

Segundo Pedro Lombardo, o rito central da transubstanciação ocorre no momento em que a fórmula litúrgica é pronunciada, ou seja, a transformação do pão e vinho em carne e sangue de Cristo se dá “pela força das palavras”, na expressão de Pedro Comestor. Entende-se assim por que as ideias de Berengário de Tours foram condenadas por vários concílios na segunda metade do século 11. Ao negar a realidade da transubstanciação e ao defender a livre interpretação das Escrituras, ele não apenas ameaçava no essencial a atividade sacerdotal como também contrariava a crença geral no poder mágico das palavras. Sentido semelhante teve no começo do século seguinte a heresia de Tanchelm de Antuérpia, para quem a eficácia do sacramento depende da condição moral de quem o ministra. Nesse quadro mental, os debates teológicos sobre o nominalismo e o realismo eram a expressão erudita de preocupações e interesses profundos, que tocavam em questões fundamentais para o homem da Idade Média.

Para a sociedade cristã medieval, o sacramento do batismo era o verdadeiro nascimento do indivíduo, não apenas porque ele era lavado do Pecado Original e ingressava então efetivamente naquela sociedade, mas também porque recebia um nome. De fato, para a mentalidade arcaica, somente o que tem nome existe. E, se esse nome é o de um mártir, santo ou personagem bíblica, a pessoa poderia assumir algumas de suas virtudes, segundo o velho princípio do bonum nomen, homum bonum. O homem enquanto espécie é semelhante ao Criador, enquanto indivíduo é semelhante ao patrono. Por isso, ao se tornar papa, a pessoa mudava de nome. Por isso também um cristão não utilizava nomes próprios pagãos. Por isso, enfim, não se adotava o nome de Cristo. O nome é sempre imagem de um modelo. ""

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