Imagem: La Vie Spirituelle
O dom de Adão era o mesmo que o de Orfeu: dar nome ao que não tinha. Por isso, para entender palavras de prata e silêncios de ouro, recomendo a leitura de: “O
Poder da Palavra – Adão e os Animais na Tapeçaria de Gerona”, em: Franco Júnior, Hilário. A EVA BARBADA: ENSAIOS DE MITOLOGIA MEDIEVAL. 1996, Editora da
USP. Acho importante apresentar este excerto das páginas 112-114, para desenvolver um raciocínio aplicado:
"" No
judaísmo, segundo a expressão bíblica, “a morte e a vida estão em poder da
língua”, como demonstra o fato de o universo ter sido criado pela palavra de
Deus. Contudo a expressão mais clara daquele princípio estava no próprio nome
de Deus, tão forte que era impronunciável. Todos os nomes divinos eram
poderosos: “Quem evocar o nome do Senhor será salvo”. O cristianismo, inserido
na mesma estrutura mental, também acreditava no poder da palavra, sobretudo na
palavra de Deus, que é como uma “espada”, e dos nomes divinos, que “nenhuma
boca de homem deve pronunciar se não estiver em perigo de vida”. O islamismo
aceitava igualmente esse poder mágico, sobretudo a corrente sufista, para cujos
adeptos o caráter sagrado das palavras de Alá era tal que elas deveriam ser
repetidas independentemente de o homem compreendê-las. Para os celtas, um dos
principais heróis da corte de Artur era Gwrhyr Gwaslstawt Ieithoedd,
literalmente “intérprete de línguas”, aquele que todos os idiomas existentes.
Herdeira
de todas essas tradições, a sociedade cristã ocidental também reservava lugar
importante à palavra na sua visão do mundo. Ela era considerada criadora, mas
também destrutiva, como para egípcios, judeus e celtas. Mal utilizada, ela
poderia levar ao aparecimento do Diabo sob forma animal,
como faziam os hereges de Orleans em princípios do século 11. Mas poderia
também dominar os demônios, como fez São Marcial de Limoges, segundo uma
hagiografia da mesma época: conhecedor de todas as línguas, o santo conjura os
anjos maus e força-os a dizerem seus nomes, forma de dominá-los e de poder
então ordenar que desapareçam para sempre no deserto. Assim como possuir um
nome é existir, conhecer o nome é controlar aquilo que ele designa. Por isso
mesmo, certos objetos recebiam nomes, caso das espadas de alguns heróis como
Cid, Rolando, Olivier, Turpin, Ganelão, Carlos Magno e Artur. Enfim, saber usar
as palavras equivale a uma prática de poder, por essa razão Deus tinha feito de
Moisés um orador.
O
poder da palavra era visto como algo efetivo, daí por que a sociedade medieval
tinha um vasto campo semântico de violência verbal. O modelo era bíblico, pois
a própria Divindade havia amaldiçoado a serpente responsável pelo pecado de
Adão e Eva. A maldição de Noé sobre Cam era considerada a origem do fenômeno
social da escravidão. De acordo com essa visão – apesar de São Pedro falar em
“bendizer aqueles que te maldizem” e de São Bento haver recomendado aos monges
“benzer, não maldizer” – a documentação monástica medieval mostra diversos
exemplos de fórmulas de maldição. Reconhecendo a eficácia simbólica da palavra
e desejando restringir seu uso, em meados do século 11 Pedro Damiano relembrava
as advertências bíblicas contra o “vício da língua”; de fins do século 12 a
meados do 13 os teólogos sistematicamente discutiram, avaliaram e classificaram
diversos “pecados da língua”; na segunda metade do século 13, o poder
monárquico recém-fortalecido legislava contra a blasfêmia, como fizeram Luís XI
na França e Afonso X em Castela.
Bem
empregada, como na confissão, a palavra salva. Com exceção de Graciano, todos
os teólogos do século 12 consideravam a confissão obrigatória, o que o Concílio
de Latrão de 1215 regulamentou ao impô-la ao menos anualmente a todo cristão.
Apesar de a cultura eclesiástica insistir em que a confissão deve ser dirigida
a um sacerdote, na ausência deste ela podia ser feita mesmo a um leigo. A
necessidade mítica da expiação pela palavra era mais forte do que as restrições
ideológicas. A palavra salva mesmo a posteriori,
como nas preces e missas rezadas pelas almas dos mortos. Porque a palavra é
poderosa, quando não pronunciada ela se torna perigosa. O silêncio de Percival,
que não fez a pergunta adequada, prolongou os sofrimentos do Rei Pescador e de
sua terra. Misteriosa e ambígua, a palavra estava na base de tudo. Como dissera
o próprio Cristo, “por tuas palavras serás justificado e por tuas palavras
serás condenado”.
Segundo
Pedro Lombardo, o rito central da transubstanciação ocorre no momento em que a
fórmula litúrgica é pronunciada, ou seja, a transformação do pão e vinho em
carne e sangue de Cristo se dá “pela força das palavras”, na expressão de Pedro
Comestor. Entende-se assim por que as ideias de Berengário de Tours foram
condenadas por vários concílios na segunda metade do século 11. Ao negar a
realidade da transubstanciação e ao defender a livre interpretação das
Escrituras, ele não apenas ameaçava no essencial a atividade sacerdotal como
também contrariava a crença geral no poder mágico das palavras. Sentido
semelhante teve no começo do século seguinte a heresia de Tanchelm de
Antuérpia, para quem a eficácia do sacramento depende da condição moral de quem
o ministra. Nesse quadro mental, os debates teológicos sobre o nominalismo e o
realismo eram a expressão erudita de preocupações e interesses profundos, que
tocavam em questões fundamentais para o homem da Idade Média.
Para
a sociedade cristã medieval, o sacramento do batismo era o verdadeiro
nascimento do indivíduo, não apenas porque ele era lavado do Pecado Original e
ingressava então efetivamente naquela sociedade, mas também porque recebia um
nome. De fato, para a mentalidade arcaica, somente o que tem nome existe. E, se
esse nome é o de um mártir, santo ou personagem bíblica, a pessoa poderia assumir
algumas de suas virtudes, segundo o velho princípio do bonum nomen, homum bonum. O homem enquanto espécie é semelhante ao
Criador, enquanto indivíduo é semelhante ao patrono. Por isso, ao se tornar
papa, a pessoa mudava de nome. Por isso também um cristão não utilizava nomes
próprios pagãos. Por isso, enfim, não se adotava o nome de Cristo. O nome é
sempre imagem de um modelo. ""
Nenhum comentário:
Postar um comentário