Texto referencial extraído da obra “Somos as Águas Puras”, de
Carlos Rodrigues Brandão (Campinas, SP: Papirus, 1994), no Capítulo 3 – Outros
Olhares, Outros Afetos, Outras Ideias: Homem, Saber e Natureza (págs. 80-82). O
autor, psicólogo, antropólogo e sociólogo, é um dos grandes nomes das cátedras
universitárias brasileiras, e neste trecho de seu livro nos dá as coordenadas
para uma melhor compreensão do processo histórico em andamento na Amazônia, bem como no
restante do mundo globalizado: a Liberdade Humana não pressupõe a Liberdade à Vida, mas a Liberdade à Vida abrange a Liberdade Humana, e a responsabiliza.
Quando, no ano de 1976, Claude Lévi-Strauss é convidado para
apresentar na Assembleia Nacional Francesa um depoimento a respeito da questão
das liberdades humanas diante de uma comissão especial, ele o faz de uma
maneira em que, por caminhos diferentes, mas não muito afastados, uma mesma
ideia central lembra as propostas de alargamentos e inclusões lidas em
Marcuse/Habermas. Lévi-Strauss tem à sua frente três documentos partidários
sobre o assunto, e todos eles procuram estabelecer um fundamento universal para
a ideia de liberdade e sobre os direitos dela derivados. Dois dos três
documentos centram uma definição da liberdade sobre o ela ser “um caráter
distintivo da natureza da vontade humana” e o texto do grupo comunista acentua,
na liberdade, “os direitos imprescindíveis” atribuídos e possuídos “por todo o
ser humano”. Uma tal extensão do sentido de liberdade a todos os homens, abolindo
por consequência privilégios e direitos exclusivos de castas, classes, etnias e
outras categorias de pessoas, é bastante recente, ele recorda. Mesmo hoje, na
verdade, apenas frações muito pequenas da humanidade pensam segundo tais
princípios e podem viver regidas por tais direitos.
Ao considerar impasses de uma lógica social de reciprocidades
e de uma ética política de relacionamentos, o que Lévi-Strauss coloca em
questão não são propriamente os seus princípios, mas a restrição de seu âmbito,
o acanhamento de sua abrangência, o arbitrário de suas inclusões. E, para
começo de conversa, o fundamento filosófico e jurídico da liberdade posto sobre
a natureza do homem como e enquanto um ser moral. Duas críticas são levantadas.
A primeira: essa universalidade moral é, ela própria, arbitrária e mais
histórica do que “natural”, pois, “de acordo com os tempos, os lugares e os
regimes”, a própria ideia elementar de liberdade admite conteúdos diversos e
seus preceitos são aplicados segundo critérios e por meio de estratégias
bastante desiguais. A segunda: na realidade social de sua aplicação, sempre é
necessário restituir a liberdade ao seu caráter em verdade relativo, pois todos
os documentos sobre o assunto submetem os direitos pessoais à liberdade a
códigos jurídicos que os restringem aos limites da aplicação de leis
específicas para torná-los socialmente realizáveis.
Seria possível encontrar um cenário e sujeitos para o
fundamento da liberdade, onde a sua evidência fosse suficientemente forte para
ser de fato indistintamente aplicada a todos? Provavelmente sim, mas não, por
certo, dentro dos limites da ideia de homem como um ser moral, isto é, como um
senhor de direitos devido à sua racionalidade, à sua existência social de
criador de cultura, o que o exclui do âmbito de todos mais e de tudo à sua
volta e, assim, exclui tudo e todos os “outros” da esfera dos direitos, logo,
de uma possível reciprocidade neles fundada. Ora, se um tal princípio normativo
não está aí, na “humanidade” exclusiva do homem, onde poderia estar? Simples.
Na extensão da ideia do homem ao que é a sua característica mais essencialmente
real e manifesta: ser um ser vivo. Ser, melhor ainda, um ser da vida. O que
significa: partilhar com outros seres a própria vida.
Eis um lugar natural
mais irredutível e, ao mesmo tempo, mais generosamente abrangente e mais
ontologicamente sólido, sobre o qual armar a morada dos direitos humanos,
estendendo-os “naturalmente” de humanos
a da vida. De uma maneira que me
parece muito próxima à de Marcuse/Habermas, a ousadia do olhar de Lévi-Strauss
desloca o centro (o homem como um ser
moral, social) e o eixo (homem-homem,
no cenário restrito da racionalidade e das reciprocidades propriamente sociais,
em sua dimensão exclusivamente humana) para um domínio de identidades e
relacionamentos muito alargado, e de que o homem participa, em vez de se excluir para dominar: a vida.
Pode ser que nem valha a pena, mas, nem que seja como uma
breve homenagem da memória, gostaria de lembrar que o presságio que Claude
Lévi-Strauss anuncia aqui (aportando a barca velha e avariada, em que viajam a
ética e a jurisprudência com ambições de universalidade e de eternidade, na
oficina de uma criteriosa revisão ontológica) lembra de raspão aquela notável e
polêmica conclusão de Émile Durkheim nos momentos finais de As formas elementares da vida religiosa.
Ao se perguntar e aos leitores porque as formas e matrizes fundamentais do
pensamento sobre as categorias do mundo da natureza, pensadas como categorias
do entendimento oriundo da experiência social, e criadas como um pensar da sociedade
sobre si mesma, funcionam quando se aplicam à ordem lógica do mundo natural,
ele acredita encontrar a resposta ao lembrar que a sociedade não é mais do que
uma das dimensões, a mais completa e acabada, da ordem mesma do mundo natural.
Claro, uma dimensão única que a todo sobrepassa, que acrescenta à vida e consciência, em que todo o significante encontra afinal o seu
significado, onde o meramente coletivo se torna não apenas social, mas se
realiza em uma forma sui generis de
ordenação do real, a sociedade, onde finalmente a própria realidade pensa a si
mesma através da comunicação entre os seus sujeitos. Mas, em tudo, uma dimensão
organizada da natureza. Eis aí.
Ao estender o lugar da lógica e da ética dos fundamentos da
liberdade de um humano-ser-moral para um humano-ser-da-vida, uma outra proposta
de princípios dos direitos subordina-se à vida, de tal sorte que, então, os
próprios direitos humanos submetem-se aos direitos da vida e à vida, contidos
em todos os seres que dela participam, inclusive os humanos. Pois, agora, os
limites das relações e suas consequências não estão mais entre os humanos e na
sociedade,mas entre todos os tipos de seres vivos e nos entrecruzamentos entre
a sociedade e a natureza. Uma decorrência direta: os direitos concretos da
espécie humana devem ser pensados na sua relação com os direitos de existência
e realização de outras espécies de seres vivos – animais e plantas, sobretudo.
De tal sorte que eles deveriam “cessar”, se colocam em risco a sobrevivência de
uma das outras espécies que, com a humana, partilham do mistério da realidade
e, por consequência, dos direitos à vida. Com o que, a uma lógica de
relacionamento e comunicações que estenda o sentido de ser-em-relação da vida
humana à vida em-si deve corresponder uma ética e uma jurisprudência onde os
direitos de toda a vida, e não apenas os da vida humana, devem ser por igual
considerados. E esta seria, afinal, a sua universalidade.
+++ (o mais, conheçam o livro...)
Pois bem, para esta nossa proposta de EcoGnose, esmiuçando a realidade planetária, temos que a
maioria das culturas humanas antropocentricamente se propôs direitos de
sobrevivência às custas do extermínio de outras formas de vida, como talvez tenha
ocorrido com os nossos próprios parentes primatas os chamados Neanderthais, sem
contar nas defesas de territórios de morada das famílias humanas, mas a
pecuária, profissão curiosamente inaugurada pela vítima (Abel, o pastor) e não
pelo algoz (Caim, o lavrador), distoou da mais antiga profissão de
caçador-coletor, que pressupunha um alinhamento energético entre as criaturas
que necessitava ser harmonizado através de rituais, sons e gestos, e formou a
primeira linha de produção de carne, cujo ofício em repetição durante as
gerações de animais alimentados para depois servir como alimento aos humanos
foi a primeira sugestão da mecanização que formou o pensamento capitalista de acumulação
de capital. O que as produções agrícolas, submetidas a outros fatores
ambientais (culturas de subsistência ou de suporte econômico de uma atividade
colonizadora, por vezes da própria nação), jamais sugeririam, já que
dependentes de uma estrutura social mais coletivista, e, portanto, humana. Neste
sentido é que o discurso de Lévi-Strauss sobre a liberdade, aqui apresentado
por Brandão, aponta para o transcurso da obra de Leonardo Boff e a Teologia da
Libertação aplicada à Liberdade da Vida, e atualiza o Cristianismo em um
contexto de Cristo libertador de todo sacrifício, como o gesto de Yeshua Ben-Yussef
no Templo de Jerusalém que o conduziu à condenação dos sacerdotes: aboliu a
escravidão dos animais... Abriu assim ELE a porta da liberdade a toda a forma
de vida!
(Eduardo Bayer Karipunã - Acre, Amazônia, Brasil).
Fonte da imagem e excelente site: Signs of Heaven. Leiam a Entrevista de Claude Lévi-Strauss aos 90 Anos a Beatriz Perrone Moisés em Revista de Antropologia, e vejam algo mais em Revista Mirabilia 6
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