quarta-feira, 14 de março de 2012

Dos Direitos do Homem aos Direitos da Vida


Texto referencial extraído da obra “Somos as Águas Puras”, de Carlos Rodrigues Brandão (Campinas, SP: Papirus, 1994), no Capítulo 3 – Outros Olhares, Outros Afetos, Outras Ideias: Homem, Saber e Natureza (págs. 80-82). O autor, psicólogo, antropólogo e sociólogo, é um dos grandes nomes das cátedras universitárias brasileiras, e neste trecho de seu livro nos dá as coordenadas para uma melhor compreensão do processo histórico em andamento na Amazônia, bem como no restante do mundo globalizado: a Liberdade Humana não pressupõe a Liberdade à Vida, mas a Liberdade à Vida abrange a Liberdade Humana, e a responsabiliza.

Quando, no ano de 1976, Claude Lévi-Strauss é convidado para apresentar na Assembleia Nacional Francesa um depoimento a respeito da questão das liberdades humanas diante de uma comissão especial, ele o faz de uma maneira em que, por caminhos diferentes, mas não muito afastados, uma mesma ideia central lembra as propostas de alargamentos e inclusões lidas em Marcuse/Habermas. Lévi-Strauss tem à sua frente três documentos partidários sobre o assunto, e todos eles procuram estabelecer um fundamento universal para a ideia de liberdade e sobre os direitos dela derivados. Dois dos três documentos centram uma definição da liberdade sobre o ela ser “um caráter distintivo da natureza da vontade humana” e o texto do grupo comunista acentua, na liberdade, “os direitos imprescindíveis” atribuídos e possuídos “por todo o ser humano”. Uma tal extensão do sentido de liberdade a todos os homens, abolindo por consequência privilégios e direitos exclusivos de castas, classes, etnias e outras categorias de pessoas, é bastante recente, ele recorda. Mesmo hoje, na verdade, apenas frações muito pequenas da humanidade pensam segundo tais princípios e podem viver regidas por tais direitos.

Ao considerar impasses de uma lógica social de reciprocidades e de uma ética política de relacionamentos, o que Lévi-Strauss coloca em questão não são propriamente os seus princípios, mas a restrição de seu âmbito, o acanhamento de sua abrangência, o arbitrário de suas inclusões. E, para começo de conversa, o fundamento filosófico e jurídico da liberdade posto sobre a natureza do homem como e enquanto um ser moral. Duas críticas são levantadas. A primeira: essa universalidade moral é, ela própria, arbitrária e mais histórica do que “natural”, pois, “de acordo com os tempos, os lugares e os regimes”, a própria ideia elementar de liberdade admite conteúdos diversos e seus preceitos são aplicados segundo critérios e por meio de estratégias bastante desiguais. A segunda: na realidade social de sua aplicação, sempre é necessário restituir a liberdade ao seu caráter em verdade relativo, pois todos os documentos sobre o assunto submetem os direitos pessoais à liberdade a códigos jurídicos que os restringem aos limites da aplicação de leis específicas para torná-los socialmente realizáveis.

Seria possível encontrar um cenário e sujeitos para o fundamento da liberdade, onde a sua evidência fosse suficientemente forte para ser de fato indistintamente aplicada a todos? Provavelmente sim, mas não, por certo, dentro dos limites da ideia de homem como um ser moral, isto é, como um senhor de direitos devido à sua racionalidade, à sua existência social de criador de cultura, o que o exclui do âmbito de todos mais e de tudo à sua volta e, assim, exclui tudo e todos os “outros” da esfera dos direitos, logo, de uma possível reciprocidade neles fundada. Ora, se um tal princípio normativo não está aí, na “humanidade” exclusiva do homem, onde poderia estar? Simples. Na extensão da ideia do homem ao que é a sua característica mais essencialmente real e manifesta: ser um ser vivo. Ser, melhor ainda, um ser da vida. O que significa: partilhar com outros seres a própria vida.

 Eis um lugar natural mais irredutível e, ao mesmo tempo, mais generosamente abrangente e mais ontologicamente sólido, sobre o qual armar a morada dos direitos humanos, estendendo-os “naturalmente” de humanos a da vida. De uma maneira que me parece muito próxima à de Marcuse/Habermas, a ousadia do olhar de Lévi-Strauss desloca o centro (o homem como um ser moral, social) e o eixo (homem-homem, no cenário restrito da racionalidade e das reciprocidades propriamente sociais, em sua dimensão exclusivamente humana) para um domínio de identidades e relacionamentos muito alargado, e de que o homem participa, em vez de se excluir para dominar: a vida.

Pode ser que nem valha a pena, mas, nem que seja como uma breve homenagem da memória, gostaria de lembrar que o presságio que Claude Lévi-Strauss anuncia aqui (aportando a barca velha e avariada, em que viajam a ética e a jurisprudência com ambições de universalidade e de eternidade, na oficina de uma criteriosa revisão ontológica) lembra de raspão aquela notável e polêmica conclusão de Émile Durkheim nos momentos finais de As formas elementares da vida religiosa. Ao se perguntar e aos leitores porque as formas e matrizes fundamentais do pensamento sobre as categorias do mundo da natureza, pensadas como categorias do entendimento oriundo da experiência social, e criadas como um pensar da sociedade sobre si mesma, funcionam quando se aplicam à ordem lógica do mundo natural, ele acredita encontrar a resposta ao lembrar que a sociedade não é mais do que uma das dimensões, a mais completa e acabada, da ordem mesma do mundo natural. Claro, uma dimensão única que a todo sobrepassa, que acrescenta à vida e consciência, em que todo o significante encontra afinal o seu significado, onde o meramente coletivo se torna não apenas social, mas se realiza em uma forma sui generis de ordenação do real, a sociedade, onde finalmente a própria realidade pensa a si mesma através da comunicação entre os seus sujeitos. Mas, em tudo, uma dimensão organizada da natureza. Eis aí.

Ao estender o lugar da lógica e da ética dos fundamentos da liberdade de um humano-ser-moral para um humano-ser-da-vida, uma outra proposta de princípios dos direitos subordina-se à vida, de tal sorte que, então, os próprios direitos humanos submetem-se aos direitos da vida e à vida, contidos em todos os seres que dela participam, inclusive os humanos. Pois, agora, os limites das relações e suas consequências não estão mais entre os humanos e na sociedade,mas entre todos os tipos de seres vivos e nos entrecruzamentos entre a sociedade e a natureza. Uma decorrência direta: os direitos concretos da espécie humana devem ser pensados na sua relação com os direitos de existência e realização de outras espécies de seres vivos – animais e plantas, sobretudo. De tal sorte que eles deveriam “cessar”, se colocam em risco a sobrevivência de uma das outras espécies que, com a humana, partilham do mistério da realidade e, por consequência, dos direitos à vida. Com o que, a uma lógica de relacionamento e comunicações que estenda o sentido de ser-em-relação da vida humana à vida em-si deve corresponder uma ética e uma jurisprudência onde os direitos de toda a vida, e não apenas os da vida humana, devem ser por igual considerados. E esta seria, afinal, a sua universalidade.

+++ (o mais, conheçam o livro...)

Pois bem, para esta nossa proposta de EcoGnose, esmiuçando a realidade planetária, temos que a maioria das culturas humanas antropocentricamente se propôs direitos de sobrevivência às custas do extermínio de outras formas de vida, como talvez tenha ocorrido com os nossos próprios parentes primatas os chamados Neanderthais, sem contar nas defesas de territórios de morada das famílias humanas, mas a pecuária, profissão curiosamente inaugurada pela vítima (Abel, o pastor) e não pelo algoz (Caim, o lavrador), distoou da mais antiga profissão de caçador-coletor, que pressupunha um alinhamento energético entre as criaturas que necessitava ser harmonizado através de rituais, sons e gestos, e formou a primeira linha de produção de carne, cujo ofício em repetição durante as gerações de animais alimentados para depois servir como alimento aos humanos foi a primeira sugestão da mecanização que formou o pensamento capitalista de acumulação de capital. O que as produções agrícolas, submetidas a outros fatores ambientais (culturas de subsistência ou de suporte econômico de uma atividade colonizadora, por vezes da própria nação), jamais sugeririam, já que dependentes de uma estrutura social mais coletivista, e, portanto, humana. Neste sentido é que o discurso de Lévi-Strauss sobre a liberdade, aqui apresentado por Brandão, aponta para o transcurso da obra de Leonardo Boff e a Teologia da Libertação aplicada à Liberdade da Vida, e atualiza o Cristianismo em um contexto de Cristo libertador de todo sacrifício, como o gesto de Yeshua Ben-Yussef no Templo de Jerusalém que o conduziu à condenação dos sacerdotes: aboliu a escravidão dos animais... Abriu assim ELE a porta da liberdade a toda a forma de vida!    

(Eduardo Bayer Karipunã - Acre, Amazônia, Brasil).

Fonte da imagem e excelente site: Signs of Heaven. Leiam a Entrevista de Claude Lévi-Strauss aos 90 Anos a Beatriz Perrone Moisés em Revista de Antropologia, e vejam algo mais em Revista Mirabilia 6

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